Entenda por que luminárias japonesas foram retiradas da Rua dos Aflitos, na Liberdade, que guarda a memória negra de SP


Luminárias estavam na rua da Capela dos Aflitos, igreja construída em 1779 ao redor de um cemitério de escravizados; restante do bairro ainda segue com os tradicionais postes. Em 2018, arqueólogos encontraram em terreno do entorno nove ossadas de escravos dos séculos 18 e 19. Luminárias que ficavam na Rua dos Aflitos, na Liberdade
Reprodução/Antena Paulista/TV Globo
Na semana do Dia da Consciência Negra luminárias japonesas que ficavam na Rua dos Aflitos, no bairro Liberdade, em São Paulo, foram retiradas da via e substituídas por LED. O restante do bairro ainda segue com os tradicionais postes de iluminação asiáticos.
A decisão da prefeitura de retirar as luminárias apenas daquela rua ocorreu após pressão de ativistas do movimento negro.
A administração municipal ressaltou que a troca feita em 18 de novembro visa “equilibrar o respeito às diferentes camadas históricas e culturais presentes no bairro” e garantir que a “memória de cada grupo seja adequadamente representada”.
A Associação Amigos da Capela afirmou que a remoção foi fruto de uma luta de seis anos. “A reurbanização do Beco dos Aflitos faz parte do projeto Ruas Abertas. Reparação aos nossos ancestrais, dando visibilidade à Capela dos Aflitos, patrimônio histórico tombado”, disse, em nota.
Mas por que houve a pressão dos ativistas? O que a rua representa para o movimento negro? Entenda abaixo:
Cemitério dos Aflitos e Capela Nossa Senhora dos Aflitos
Escavação arqueológica traz à tona primeiro cemitério público de SP
Antes de se chamar “Praça da Liberdade”, o espaço público era conhecido como Largo da Forca, destino dos condenados à morte até a metade do século 19, sendo a maioria deles de escravos fugitivos: negros e indígenas.
O local de enforcamentos foi escolhido pela proximidade com a necrópole, o Cemitério dos Aflitos, que ficava entre as Ruas dos Estudantes, Rua Galvão Bueno, Rua da Glória e Rua dos Aflitos.
Pouco abaixo do antigo Largo da Forca ficava o Largo do Pelourinho (atual Largo Sete de Setembro). Era ali onde os negros fugitivos eram açoitados até a metade do século XIX.
No fim da Rua dos Aflitos, está a Capela dos Aflitos, uma igreja construída em 1779 ao redor do cemitério de escravizado. O prédio continua no local e é patrimônio tombado.
Capela dos Aflitos ficava ao redor do Cemitério dos Aflitos, mostram estudos
Reprodução/Antena Paulista/TV Globo
Em dezembro de 2018, um grupo de arqueólogos encontrou em um terreno particular, entre a Rua dos Aflitos e a Rua Galvão Bueno, nove ossadas de escravos entre os séculos 18 e 19.
A descoberta, em uma área onde seria construído um prédio particular na Rua Galvão Bueno, transformou o local em um sítio arqueológico (veja vídeo acima).
De acordo com os pesquisadores, os esqueletos eram da época da escravidão e foram enterrados no período de 1775 a 1858, comprovando a existência do Cemitério dos Aflitos, até então só conhecido por documentos.
Ossadas são localizadas em local documentado como a primeira necrópole da cidade de São Paulo, no bairro da Liberdade
Marcelo Brandt/G1
Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o sítio arqueológico Cemitério dos Aflitos foi incluído na plataforma de informação e gestão do Patrimônio Cultural, gerenciada por meio do Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão.
O cadastro feito pelo Iphan, em 13 de fevereiro de 2020, “apresenta importante significado histórico para a cidade, na medida em que recupera uma memória praticamente perdida”, ressalta o instituto.
Ainda conforme o Iphan, estudos apontam que foram sepultadas no Cemitério dos Aflitos pessoas executadas, indígenas e escravos.
Arqueóloga na escavação em um sítio funerário descoberto em um terreno na Liberdade, em São Paulo. A região abrigava o Cemitério dos Aflitos, o primeiro cemitério público da cidade, onde escravos, condenados e outras pessoas marginalizadas eram enterradas
Marcelo Brandt/G1
O estudo identificou ainda materiais (botões) diretamente associados a dois indivíduos, como parte da indumentária de um indivíduo e quatro contas de vidro azul junto ao pescoço de outro.
“Os esqueletos não foram enterrados com pertences e pelo menos um deles usava um colar com contas de vidro, o que indica o pertencimento a alguma religião de matriz africana. Assim, no mínimo, a descoberta comprova que o primeiro cemitério de São Paulo era destinado às populações marginalizadas socialmente, aos escravizados, aos presos, aos pobres, às pessoas com doenças contagiosas, aos condenados à forca e àqueles que não possuíam família”, explicou na época Sônia Cunha, arqueóloga coordenadora da pesquisa em campo, ao g1.
Movimentos sociais reivindicaram em audiências públicas na Câmara Municipal a criação do Memorial dos Aflitos no terreno. Em dezembro de 2020, o então prefeito Bruno Covas (PSDB) sancionou um projeto de lei para criar o Memorial dos Aflitos no terreno.
Atualmente, o local passa por obras para abrigar o memorial. No início de novembro, o g1 noticiou que, por conta de uma reforma indevida, parte da parede de um prédio vizinho das obras tombou e caiu dentro da área de escavações.
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‘Não é disputa entre povos negros e cultura japonesa’
Em entrevista à TV Globo, Hubber Clemente, hoteleiro especializado em afroturismo e membro da Associação Amigos da Capela, o pedido de remoção das luminárias japonesas na Rua dos Aflitos não se trata de uma disputa entre as duas culturas.
“Não é uma disputa entre os povos negros e a cultura japonesa, as duas podem se conversar sem problema algum em relação a esse território. O que a gente não deseja é um apagamento de uma em detrimento a outra”, afirma.
“Nós precisamos reforçar também que a liberdade, que essa região, que esse território, foi, num primeiro momento, ocupado por pessoas negras”, conta. “A partir do momento em que se tira essas luminárias, que foram colocadas em um lugar que é muito importante para a história e para a cultura negra na cidade de São Paulo, a gente consegue preservar mais as características originais.”
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Luminárias japonesas são retiradas de rua da Liberdade após pressão do movimento negro
Reprodução/TV Globo
O que diz a Prefeitura de SP
“A SP Regula informa que a substituição das luminárias no Beco dos Aflitos, no bairro da Liberdade, foi uma medida tomada em resposta ao pedido de entidades ligadas ao movimento negro, que manifestaram preocupações quanto à adequação das lanternas Suzuranto ao contexto histórico da região.
Em compromisso com a transparência e o diálogo com a sociedade, sempre buscando soluções que respeitem a diversidade cultural e histórica da cidade, as lanternas, que remetem à imigração japonesa, foram consideradas inadequadas para o local, uma vez que o Beco dos Aflitos abriga a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, um marco histórico da época da escravidão no Brasil. A mudança foi feita antes do Dia da Consciência Negra, mas as lanternas Suzuranto foram mantidas no restante do bairro, preservando a herança da imigração japonesa. A decisão buscou equilibrar o respeito às diferentes camadas históricas e culturais presentes no bairro, garantindo que a memória de cada grupo seja adequadamente representada”.
Mapa mostra Cemitério dos Aflitos e outros pontos no bairro da Liberdade, onde os escravos viviam e eram mortos
Arte/G1
Luminárias que ficavam na Rua dos Aflitos, na Liberdade
Reprodução/Antena Paulista/TV Globo
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