‘Fui duas vezes vítima do holocausto’, diz sobrevivente que namorou filha de oficial nazista sem saber


Gabriel Waldman publicou livro de autoficção no qual revela detalhes do romance com a filha do comandante de Treblinka, campo de concentração em que mais de 800 mil judeus foram mortos. Em campanha, sobrevivente se une com curitibano vítima de violência para falar sobre intolerância. Sobrevivente do holocausto lembra quando descobriu que havia namorado filha de nazista
Em fevereiro de 1967, enquanto se sentava para ler o jornal, Gabriel Waldman leu uma manchete que mudaria o rumo da própria vida: o ex-sogro havia sido preso.
Uma notícia como essa pode causar burburinho em qualquer família, porém, pesavam no caso as acusações contra o ex-sogro: Franz Paul Stangl – comandante dos campos de extermínio nazistas Sobibor e Treblinka na Segunda Guerra Mundial.
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Gabriel, que era sobrevivente dos horrores do holocausto, havia namorado, sem saber, a filha de um dos principais comandantes nazistas.
“Um dia, eu levanto de manhã, vou tomar café da manhã e está o Estadão em cima da mesa. Na primeira página está uma enorme fotografia do pai dela, dizendo assim: ‘Preso no Brasil um dos maiores nazistas da Segunda Guerra Mundial’. O pai dela era comandante do campo de extermínio de Treblinka”.
“Quando eu soube disso, os meus sinais vitais pararam em zero. Era totalmente inconcebível para mim tudo isso”, lembra.
Aos 86 anos, ele compartilhou a própria história em um auditório dentro do Centro Israelita do Paraná, em Curitiba.
Com uma plateia atenta, a fala integrou uma solenidade que marcou os 80 anos da liberação do campo de concentração de Auschwitz – onde mais de 1 milhão de judeus foram assassinados durante a Segunda Guerra Mundial – no último dia 27 de janeiro.
Os contornos da história real ganharam novos detalhes e se tornaram um livro, de 160 páginas, publicado pela Buzz Editora, no qual o leitor tem a oportunidade de acessar os pensamentos do autor. Com as mãos trêmulas, Gabriel Waldman assinou cada um dos exemplares da obra, que foi, para ele, uma forma de reconciliação com o próprio passado.
“Fiquei com uma mágoa tão profunda, que nunca mais, durante 60 anos, consegui falar sobre isso. Até que pouco antes da pandemia eu li uma frase da escritora Karen Blixen que fala: ‘Toda grande dor pode ser suportada se você escreve sobre ela’. Então eu decidi escrever o livro”, conta.
Gabriel Waldman usou livro como forma de reconciliação com o passado
Acervo Pessoal
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O encontro
Nascido no seio de uma família judaica na Hungria, em 1938, Gabriel lidou com os horrores do nazifascismo desde pequeno. O pai foi assassinado pelos nazistas. Mais de 200 familiares, entre avôs, tios e primos, foram mortos em campos de extermínios na Polônia.
Gabriel Waldman quando ainda era criança
Acervo Pessoal
Sozinho com a mãe viúva, Gabriel migrou por diversos países em busca de abrigo, que só encontrou no Brasil.
“Meu pai não voltou da guerra. Em 1949 nós decidimos fugir da Hungria. Sair legalmente já era impossível por conta da Cortina de Ferro. Nós fugimos da Hungria para a Áustria e, depois, viemos para o Brasil, porque foi o único país que deu salvo-conduto para uma mulher viúva, com filho e sem arrimo de família. Sou grato até hoje ao Brasil por isso”, afirma.
A história com a família Stangl começou quando tinha cerca de 15 anos. Recém-chegado à escola brasileira, com muita dificuldade de falar português, Gabriel conheceu uma colega, que era migrante da Áustria e falava alemão.
A familiaridade da língua permitiu que os dois se aproximassem e logo, de amigos, se tornaram namorados.
“Namoramos, coisa de adolescente. Pela primeira vez na minha vida eu encontrei um momento meu mesmo, e não mais de perseguições. Foi uma experiência muito maravilhosa, que durou até o fim do curso. Mas a vida nos separou, ela foi para um lado e eu fui para o outro”, lembra.
Gabriel Waldman quando ainda era jovem
Acervo Pessoal
Depois de estudar fora do país, Gabriel retornou e, com 26 anos, foi trabalhar na Volkswagen. Onde reencontrou a ex-namorada, que estava separada e não tinha filhos.
“Voltamos a ter um romance. Dessa vez já adultos. O pai dela também trabalhava lá. Ela me apresentou o pai, muito simpático, eu comecei a frequentar a casa deles, assim como ela também frequentava a minha casa. O casamento não estava fora da minha cogitação”, conta.
Porém, a vida de Gabriel virou de cabeça para baixo quando a namorada o procurou e, sob lágrimas, terminou o relacionamento.
“Um dia ela me chamou e, entre lágrimas, chorando muito, ela disse que nosso relacionamento não ia dar certo, adeus, tenha uma boa vida. Eu não entendia nada. Não se termina uma relação inconveniente chorando, não faz sentido”, detalha.
Resignado, seguiu a vida. Encontrou uma nova companheira, com quem se casou e construiu uma família.
‘Foi como se fosse um segundo holocausto’
Gabriel Waldman ao lado da família
Acervo Pessoal
Apesar de todo o trauma causado pela perseguição nazista, a notícia, que chegou sem ser anunciada, foi o que Gabriel classifica como um segundo holocausto.
“Eu fui duas vezes vítima do holocausto. Treblinka foi um dos maiores campos, não de trabalho, mas de extermínio, na Polônia. O tempo médio de vida de um judeu em Treblinka era de três horas”, relata.
De julho de 1942 a novembro de 1943, os nazistas assassinaram entre 870 mil e 925 mil judeus em Treblinka.
Para ele, ao se deparar com a notícia, surgiram mais dúvidas do que respostas naquele momento.
“Ela sabia que eu sou judeu. Desde a primeira vez que nós namoramos eu contei para ela, porque a única coisa de importante que aconteceu na minha vida eram as perseguições e aquela época toda. Assim como ela também me contou o que eu pensei que era a vida dela. Eu comecei a pensar o que aconteceu, fiquei tentando adivinhar o que aconteceu. Se ele não quisesse que ela namorasse um judeu, teria proibido desde o início, ou, então, não deixaria me levar em casa. Mas ele me recebeu muito bem”, conta.
As hipóteses
Tentando encontrar respostas, Gabriel criou hipóteses do que acredita que aconteceu.
Tendo a certeza de que o ex-sogro contava com a proteção de alguma pessoa ou de organizações que protegiam nazistas, Gabriel acredita que souberam que a filha do comandante namorava um judeu e ameaçaram deixar de protegê-lo caso o relacionamento não terminasse.
O destino
Franz Paul Stangl foi preso em 1967, deportado para a Alemanha Ocidental e julgado pelo assassinato em massa de um milhão de pessoas. Durante o julgamento, admitiu os assassinatos, mas argumentou que “estava com a consciência limpa, porque estava apenas cumprindo o dever”.
Em 1970, foi considerado culpado e condenado à pena máxima, prisão perpétua, mas morreu de insuficiência cardíaca cerca de seis meses depois.
Após começar a escrever o livro que contava a própria história, Gabriel a relatou em um podcast. Dias depois, um sobrinho da ex-namorada e neto do carrasco, o procurou e pediu para encontrá-lo pessoalmente.
“Ele foi muito educado, muito legal. Ele disse que conheceu o avô quando era criança. Ele não sabia que era criminoso. Para ele, ele simplesmente era um administrador. Assim como tem administradores de matadouro, de bois, vacas, ele era um administrador de abatedouro de gente. Ele apenas administrava, nunca cometeu nenhuma crueldade, nunca agrediu ninguém, só administrava. E a tal ponto isso pode ser verdade, que ele nunca mudou de nome. O mesmo nome que usava no Brasil usava na Alemanha nazista”, analisa.
Com a autorização da esposa, Gabriel pediu para reencontrar a ex-namorada, uma vez que lembrava que eram muito amigos.
O sobrinho tentou intermediar uma conversa, mas a família ficou profundamente traumatizada pelo episódio, que não quis mais tocar no assunto e a ex não quis contato. De qualquer forma, para Gabriel, o livro representa a reconciliação com a própria consciência.
“Isso para mim é muito simbólico, tanto pelos crimes cometidos, quanto pela necessidade de perdão”, afirma.
‘O ódio está novamente levantando a sua cabeça’
Memórias do Holocausto, 80 anos depois – Parte 1
Gabriel destaca que vem notando, nos últimos anos, uma escalada do ódio.
“Quando a guerra terminou, parece que o ódio ficou envergonhado, enterrou a sua cabeça e ficou quieto. Mas agora o ódio está novamente levantando a sua cabeça”, lamenta.
Como forma de usar a própria história para combater a intolerância, Gabriel estrelou, em 2023, uma campanha da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) ao lado do músico Odivaldo Carlos da Silva, conhecido como Neno.
Em 2022, o artista foi agredido por um homem com um cassetete no centro de Curitiba. Conforme a vítima, durante o ataque o agressor o chamou de “macaco”, de “negro sujo” e disse que “morador de rua tem que apanhar”.
A campanha reúne depoimentos de sobreviventes do Holocausto com o relato de brasileiros vítimas de violência de ódio e intolerância nos dias atuais.
“Foi isso que nos levou a nos conhecer. Um chamado especial. Duas pessoas que são de culturas diferentes, povos diferentes, tendo a mesma sensação de impunidade, de agressão física e moral”, diz Neno.
Gabriel Waldman ao lado do amigo Neno
Meu Paraná/RPC
Nomeada de “Viver para contar. Contar para viver”, a ação tem como objetivo alertar sobre a importância de preservar a memória do Holocausto e os impactos do apagamento da história nos dias atuais. Assim como ajudar a compreendê-la e evitar que tragédias como o Holocausto se repitam.
Dados levantados pela UNESCO revelam que 49% das publicações sobre Holocausto no Telegram negam ou distorcem fatos. Ao mesmo tempo, no Brasil, o número de denúncias relacionadas a crimes de ódio ou intolerância indicam um crescimento.
Os vídeos com os depoimentos completos podem ser acessados no site da campanha.
No evento que celebrou os 80 anos da liberação do campo de concentração de Auschwitz, os dois amigos se reencontraram e percorreram as salas do Museu do Holocausto, em Curitiba. Juntos, observaram objetos, fotos e outros itens que retratam o período.
“Nossa obrigação é trazer tudo isso, todo esse testemunho, para o público conhecer, enquanto ainda dá tempo. É lembrar para não esquecer”, afirma Gabriel.
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