A dívida em aberto do Peru com milhares de mulheres esterilizadas à força

María Elena Carbajal, membro da Associação de Vítimas de Esterilização Forçada, segura uma foto sua enquanto posa em sua casa, em Lima, em 28 de janeiro de 2025ERNESTO BENAVIDES

Ernesto BENAVIDES

Florentina foi esterilizada à força quando tinha apenas 19 anos, um bebê de meses e mal falava espanhol. Três décadas depois, esta mulher indígena pede justiça, assim como outras milhares de peruanas, vítimas de uma prática oficial e “sistemática” denunciada pela ONU.

Na época, o país estava em meio ao fogo cruzado entre o governo do então presidente Alberto Fujimori (1990-2000) e as guerrilhas sanguinárias da extrema esquerda. Fujimori morreu em setembro de 2024, após ser indultado ao cumprir 16 dos 25 anos de sua pena de prisão por violação dos direitos humanos.

Durante o período em que esteve no poder, em vários pontos do Peru, mulheres sem recursos ou estudos, muitas delas indígenas quéchuas, eram esterilizadas sem seu consentimento.

Tratou-se de uma prática “sistemática”, que violou “300.000 mulheres”; uma “forma de violência” de gênero que constitui um crime de lesa humanidade, denunciou, em outubro, o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher das Nações Unidas, que exigiu do Peru indenização e reparação às vítimas.

Foi mais que um programa de planejamento familiar para impedir que “as mulheres mais pobres se reproduzam”, explica à AFP Leticia Bonifaz, que fez parte desta comissão até 2024.

Tratou-se do maior caso de esterilizações forçadas documentado na América Latina, afirmou Bonifaz.

– “Secando por dentro” –

Aos 46 anos, Florentina Loayza é ativista de sua própria causa. Raramente sorri. Usa chapéu e traz estampado em uma camiseta branca seu clamor por justiça.

Acompanhada por um punhado de mulheres, ela se postou em janeiro de 2025 em frente à sede do Ministério da Justiça, em Lima, para exigir “reparações integrais agora”.

Em 1997, ela vivia em uma comunidade rural a 3.500 metros de altitude na região de Huancavelica, no sudeste do Peru. Havia menos de um ano tinha dado à luz seu primeiro filho quando aceitou ir ao centro de saúde recolher “provisões” oferecidas por funcionários do Estado.

Lembra que ela e outras indígenas foram amontoadas como “carneiros” em um caminhão. Ao chegarem, “as enfermeiras nos agarraram e prenderam na maca. Colocaram um soro em nós e não me lembro de mais nada”. Quando acordou com uma ferida, informaram-lhe que foi operada “para não ter filhos”.

Nem sua comunidade, nem seu companheiro acreditaram que ela havia sido operada contra sua vontade. Disseram-lhe que ela se submeteu à esterilização “por querer estar com vários homens”. Foi deixada pelo marido e ela teve que emigrar para Lima, onde ganha a vida fazendo faxinas. Hoje, garante, sofre de dores intensas no ventre.

Fujimori sempre tachou as acusações de “falsas”. Em uma decisão de 2023, a justiça peruana reconheceu que as “esterilizações involuntárias foram uma política pública”.

E ordenou o Estado a indenizar as vítimas e garantir seu acesso a serviços de saúde, uma decisão que ainda não foi acatada.

Mais de 7.000 mulheres estão inscritas até agora no registro estatal que identifica as vítimas. Segundo o Ministério Público, ainda não há condenados e apenas 3.000 casos estão em investigação preliminar.

“Arrancaram a vida de mim”, lamenta Florentina. Além de uma indenização, ela pede que o Estado peruano lhe dê acesso a um tratamento de saúde. “No rosto, parecemos bem, mas estamos secando por dentro”, soluça.

– “Cicatriz interna” –

Na casa que divide com os quatro filhos, nos arredores de Lima, María Elena Carbajal mostra a única foto que guarda de sua última gestação antes de ser esterilizada, aos 26 anos.

Ela deu à luz em um hospital público da cidade. Segundo seu relato, os médicos lhe disseram que se quisesse ver novamente seu bebê, deveria se submeter a uma “laqueadura de trompas”, pois a criticaram porque “tinha muitos filhos”. Aterrorizada, aceitou.

Encurvada de dor, ainda no hospital, com o recém-nascido nos braços, contou o ocorrido ao seu marido. Ele tampouco acreditou nela quando disse que tinha sido operada contra sua vontade. “Eu me sentia culpada pelo que havia acontecido; (de) que meu esposo tivesse me deixado”.

Ela seguiu sozinha com seus quatro filhos. Assim como Florentina, ganhou a vida limpando casas. Anos depois, precisou se tratar de um déficit hormonal provocado pela esterilização.

Além da visível, “está a cicatriz interna”, a do “abandono das nossas famílias”.

Aos 55 anos, ela chefia uma organização de mulheres vítimas da “política pública”. Em 2021, enquanto participava de um ato de protesto, foi agredida por um grupo de extrema-direita alinhado ao fujimorismo identificado pelo Poder Judiciário.

Desde então, convive com uma dolorosa lesão na coluna, pela qual espera há dois para ser operada.

“Este silêncio (…) começa pelo Estado, que nunca pediu perdeu a estas mulheres”, assinala María Esther Mogollón, assessora de uma organização que reúne cerca de 3.000 vítimas em nível todo o Peru.

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