Justiça de SP aceita 1ª denúncia contra PMs envolvidos em morte na Operação Verão; 2 agentes da Rota viram réus por homicídio


Segundo o MP, um dos agentes deitou no chão para que a câmera corporal não gravasse a ocorrência, enquanto outro PM, com a câmera descarregada, simulava que a vítima teria atirado nos policiais. Crime foi no litoral paulista.
A Tribuna Jornal
A Justiça aceitou a primeira denúncia contra policiais militares envolvidos em mortes durante a Operação Verão, que terminou com 56 mortos no início do ano na Baixada Santista. Dois agentes da Rota, tropa de elite da Polícia Militar (PM) de São Paulo, viraram réus por homicídio qualificado. Eles simularam um confronto e alteraram a cena do crime, segundo os promotores.
👉 A Operação Verão acontece todos os anos nas cidades litorâneas paulistas para prevenir a criminalidade durante os meses em que as praias da região ficam lotadas de turistas. A operação do último verão, que terminou em abril deste ano, foi alvo de diversas críticas por parte de instituições e autoridades de direitos humanos.
❗ A denúncia, obtida pela GloboNews em São Paulo, foi apresentada no dia 18 de novembro pelo Ministério Público de São Paulo e aceita pela Justiça na quinta-feira (21), quando os agentes das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a Rota, Diogo Souza Maia e Glauco Costa viraram réus por homicídio qualificado e foram afastados das ruas — nove meses após o crime. A reportagem tenta localizar a defesa deles.
Allan de Morais Santos, 36 anos, conhecido como “Príncipe”, foi baleado e morto em 10 de fevereiro deste ano, em Santos. Ele era roupeiro do Jabaquara Atlético Clube e voltava do trabalho quando foi atingido, a poucos quilômetros do local da partida.
Na versão dos PMs, quatro agentes averiguavam uma denúncia sobre um homem transportando armas em um carro Jeep Compass. Ele foi baleado após desobedecer a uma ordem de parada e jogar o carro contra a viatura.
Ainda segundo os PMs, Allan teria disparado com uma pistola contra os policiais e levava um fuzil no porta-malas. Um agente teria respondido à suposta agressão com quatro tiros de fuzil e outro com quatro tiros de pistola.
Allan foi socorrido e levado até a Santa Casa, mas já chegou morto ao hospital.
Os promotores que investigaram o caso descrevem o que encontraram como “descoberta da verdade”.
A denúncia foi feita no dia 18 de novembro pelo Ministério Público de São Paulo e aceita pela Justiça na última quinta-feira (21), quando os agentes da Rota Diogo Souza Maia e Glauco Costa viraram réus por homicídio qualificado e foram afastados das ruas — nove meses após o crime. A reportagem tenta localizar a defesa deles.
Segundo os investigadores, Allan não fugiu nem jogou o carro na viatura. Os policiais teriam seguido o carro da vítima por alguns metros, até que o ultrapassaram e bloquearam a passagem. A ordem de parada, então, foi obedecida por ele.
O MP diz que um dos policiais, o tenente Maia, foi até próximo à janela do veículo e, à curta distância, efetuou quatro disparos sequenciais de fuzil. Atingido, “o carro da vítima andou e colidiu levemente com a viatura, que estava à sua frente bloqueando a passagem”.
Em seguida, o agente Costa disparou outras quatro vezes com uma pistola na direção da vítima.
Os primeiros tiros de fuzil, no entanto, já haviam resultado “na incapacidade de a vítima ter coordenação motora nos seus membros superiores”.
Com o tiro de fuzil, em razão da multiplicidade e gravidade dos ferimentos, não havia como a vítima manobrar e acelerar o carro para fugir do local, tampouco manusear uma pistola para disparar, em meio ao confronto, contra os policiais.
“Por volta das 17h39min [um minuto após a ordem de parada], a vítima já havia sido atingida, ao todo, por seis tiros que causaram a fratura de ossos da face, fratura de arcos costais, fratura exposta de clavículas direita e esquerda e fratura de braço direito e esquerdo”, diz a denúncia.
A perícia havia encontrado um estojo deflagrado no banco do carona e um fragmento de projétil no assoalho do banco do motorista. Também havia marca de disparo de arma de fogo efetuado do lado de dentro do veículo.
Mas, segundo a promotoria, para simular uma troca de tiros e fingir que a vítima disparou nos policiais, o tenente Maia foi até a janela do carro, mexeu no braço da vítima e efetuou dois disparos, de dentro para fora do veículo.
A câmera corporal (COP) do tenente estava descarregada, mas as câmeras de policiais que estavam mais afastados capturaram os estampidos. Enquanto isso, o outro PM, agora réu, deitou no chão para que sua câmera não gravasse a cena.
A gravação de um outro policial, que chega ao local da ocorrência minutos depois, flagrou que não havia um estojo deflagrado dentro do veículo logo após o crime.
“Essa cápsula deflagrada não estava no veículo imediatamente após o suposto confronto, sendo colocada em momento posterior, quando não havia por perto policiais com COPs.”
Os agentes tornados réus afirmam ter encontrado a pistola que teria sido usada por Allan e a mostram nas imagens das câmeras quase uma hora depois da ação. Eles também afirmam ter achado, 23 minutos depois, um fuzil no porta-malas do carro da vítima.
Só que, logo após a vítima ser atingida, o mesmo policial havia revistado o porta-malas, pelo interior do veículo, e não havia encontrado nada de ilícito.
Segundo a denúncia, Diogo Souza Maia e Glauco Costa teriam então “agido com a intenção de matar, com emprego de recurso que dificultou a defesa” e depois simulado uma troca de tiros.
👉 O MP pediu a suspensão dos agentes da corporação ou que fossem afastados das ruas. O juiz Alexandre Betini, de Santos, acolheu parcialmente o pedido e determinou que os policiais passassem a fazer apenas trabalhos administrativos. Outros dois agentes que eram investigados por estar na mesma viatura foram considerados inocentes, por não terem participado efetivamente da morte.
Agora, a defesa dos réus será ouvida pela Justiça, que, discordando das alegações, designará audiência para ouvir as testemunhas e os acusados.
Por fim, caso o processo prossiga, o juiz decide se os PMs devem ser absolvidos ou se vão a júri popular.
PMs taparam as câmeras corporais
Segundo o MP, “todos os policiais adotaram condutas que impossibilitaram a devida captação das imagens pelas câmeras portáteis (COP)”. E não só os quatro agentes, mas vários dos 30 agentes da Rota que participaram da ocorrência.
As imagens mostram que um dos policiais deixou a COP virada para baixo no banco da viatura, outro chega a andar para trás para não mostrar o local do crime. Alguns foram impedidos por outros PMs de se aproximarem. Há ainda agente que bloqueia a câmera com o dedo ou a mão – um deles por mais de meia hora.
Quem não obstruiu por iniciativa própria, foi alertado para que a câmera fosse bloqueada, como ocorreu no momento em que outro policial tampou a lente da COP do seu colega. Só permaneceu próximo ao veículo da vítima quem estava com a COP descarregada. Quem possuía câmeras operantes ficou afastado e/ou de costa.
“Os policiais militares, ao adotarem essas condutas de obstrução por cerca de 20 minutos, buscaram impedir que a investigação conseguisse identificar quem foi o responsável pelo implante do fuzil no porta-malas”, afirmam os promotores.
As diretrizes da Polícia Militar determinam que o policial deve usar a câmera com a imagem totalmente desobstruída, assim como manter a câmera em direção à ocorrência “sendo vedada qualquer ação deliberada que possa prejudicar a captação de imagens e áudio, tais como: a sobreposição das mãos, de peças do EPI ou do armamento (bandoleira, coronha, etc.); corpo do policial voltado para local diferente daquele onde o fato de interesse policial se desenvolve.”
Além das imagens das câmeras, os promotores Marcio Leandro Figueroa, Raissa Maximiliano, Daniel Magalhães, Francine Pereira Sanches e Fábio Perez Fernandez ouviram cinco testemunhas –duas delas protegidas.
‘Só luto por justiça’, diz esposa de Allan
Em entrevista à GloboNews logo após a morte de Allan, sua esposa, que preferiu não se identificar, mostrou um vídeo em que ele aparece no campo trabalhando como roupeiro naquele dia. Ele estava voltando para casa, no Morro São Bento, quando foi abordado.
“Eu mandei no Whatsapp: ‘te espero em casa, não demora’. Ele me respondeu às 17h17. Às 17h38, mataram ele”, disse, enquanto mostrava a conversa.
Allan era auxiliar de roupeiro do Jabaquara Atlético Clube e havia acabado de deixar a partida quando foi atingido, a poucos quilômetros do clube. O Jabaquara confirma que ele trabalhou com a equipe naquele sábado.
Allan tinha passagem pela polícia por tentativa de homicídio e associação criminosa. Ele chegou a ser preso, mas cumpria pena em regime aberto e seguia suas obrigações com a Justiça, segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), comparecendo ao cartório mensalmente.
A família de Allan nega que ele continuasse tendo envolvimento com a facção criminosa PCC, e afirma que ele havia deixado o crime há anos.
Simplesmente mataram ele porque ele tinha passagem, por um crime que ele cometeu há 20 anos atrás. Se ele fosse vagabundo, não estava trabalhando para ganhar R$ 1.500 por mês. Destruíram a minha vida, destruíram a minha família.
“Ele pagou o que devia, saiu, mas mesmo assim foi condenado a uma sentença de morte pela Rota, afirmou.
Naquela semana, Allan tinha sido aprovado no exame prático para a categoria D da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Isso permitiria fizesse excursões de van com a esposa.
Agora, após a Justiça tornar os agentes réus, a esposa disse à GloboNews: “Quero que eles [os PMs] sejam condenados. Eu só quero justiça, só luto pela justiça”.
Operações Escudo e Verão
Essa é a quinta denúncia do Ministério Público de São Paulo considerando a Operação Escudo, em meados de 2023, e a Operação Verão, entre janeiro e abril deste ano. Juntas, elas deixaram 94 mortos na Baixada Santista. Outros quatro PMs foram assassinados no período.
As mortes começaram após o assassinato do PM da Rota Samuel Wesley Cosmo, de 30 anos, no dia 2 de fevereiro de 2023. Ele foi baleado no rosto durante um patrulhamento em Santos.
Em resposta, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário de Segurança, Guilherme Derrite, decidem iniciar a Operação Escudo, enviando policiais de batalhões de várias cidades do estado para o litoral.
Poucos dias depois, em 7 de fevereiro, outro policial foi assassinado: o cabo da PM José Silveira dos Santos. Após a segunda morte de um agente, a secretaria montou um gabinete em Santos para coordenar a operação.
“Vamos para cima até pegar todos”, disse Derrite à época.
Já o governador elogiou o trabalho da corporação: “Estou extremamente satisfeito com a ação da polícia, a partir do momento que a polícia é hostilizada e que a autoridade policial não é respeitada, há o confronto”, disse Tarcísio após as primeiras 16 mortes no litoral.
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