‘Fui pai dos meus irmãos aos 14 anos’: ausência paterna impacta 6 mil crianças no Pará em 2024


Psicóloga diz que o abandono parental pode acarretar em consequências negativas que afetam diversos âmbitos da vida de um indivíduo. Jorge de Oliveira com alguns de seus irmãos
arquivo pessoal
Nascido e criado em Colares, município da região nordeste do Pará, Jorge de Oliveira assumiu responsabilidades familiares ainda na adolescência devido a ausência de uma figura paterna na família. Com apenas 14 anos de idade, precisou adotar o papel de pai dos seus cinco irmãos mais novos para auxiliar a mãe na organização de seu núcleo familiar.
O professor e psicopedagogo de 45 anos foi registrado apenas com o nome da mãe, uma história que se repete com o passar das décadas: mais de seis mil crianças nascidas em 2024 no estado paraense não têm o nome do pai na certidão, segundo dados do Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). Ele conta que, logo no início da vida, tomou conhecimento da existência do pai biológico apenas pelos relatos da mãe, que perdeu o contato com ele assim que revelou a gravidez.
Porém, a realidade de Gessi Fátima de Oliveira, mãe de Jorge, mudou quando ela conheceu o homem que seria a presença paterna necessária naquela família. Gessi estava grávida quando passou a se relacionar com o marido, que na época decidiu assumir as responsabilidades de um pai.
“Ele já tinha um filho e decidiu me assumir quando eu ainda era um feto. Depois disso, vieram mais cinco filhos já da união deles”, relembra.
Na época Antônio José Maria Monteiro, o padrasto, conseguiu apenas realizar o reconhecimento de paternidade por meio de uma declaração voluntária, já que, até 1990, existia, por lei, o impedimento de registro de crianças fora do casamento legítimo. Como ele era casado no papel com outra mulher, foi impedido de dar continuidade ao registro.
Antônio José Maria Monteiro, quem assumiu o papel de pai na vida de Jorge
arquivo pessoal
A lei referente se tratava o artigo 355 do Código Civil de 1916, que vedava o reconhecimento dos filhos incestuosos e ou adulterinos (artigo 358 do CC de 1916), o que foi alterado pela lei de nº 8.069 do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 13 de julho de 1990, que passou a reconhecer os filhos gerados fora do casamento.
Morte do padrasto mudou a configuração da família
Quando Jorge tinha 11 anos de idade, o padrasto faleceu por consequências de um câncer e, com isso, o sustento de Gessi e seus sete filhos precisou ser feito única e exclusivamente por ela com trabalhos domésticos, uma vez que nenhum tinha idade suficiente para trabalhar. Nessa nova configuração familiar, Jorge e seu irmão mais velho, de 14 anos na época, passaram a cuidar dos irmãos mais novos e do lar, como um todo.
Assim que o mais velho completou 17 anos e decidiu entrar para a Força Aérea Brasileira, foi Jorge quem assumiu os cuidados das outras crianças
“Era eu quem dava banho, alimentava e levava os meus irmãos à escola. Eu também os acompanhava nos deveres de casa e dava a eles a educação que estava ao meu alcance”, relembra.
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De dificuldade a oportunidade de melhoria de vida
Formado em pedagogia, especialista em psicopedagogia e professor concursado da rede municipal de ensino de Colares atualmente, Jorge decidiu seguir na carreira acadêmica por ter passado boa parte da sua juventude ensinando os seus irmãos nas tarefas escolares.
“Passei muito tempo ensinando os meus irmãos a ler e escrever, e isso me motivou a entrar na carreira por eu acreditar que poderia fazer a diferença na vida de outras crianças”.
O professor perdeu a mãe em 2010, ano em que já era pai de um casal de filhos biológicos, porém, apesar da perda dolorida, entendeu que conseguiu absorver todos os ensinamentos cabíveis repassados pela mãe, assim como aprendeu com o pai.
“Meu pai e minha mãe fizeram tudo o que estava ao alcance deles em vida e eu sou muito grato por tudo, apesar das dificuldades. Meu pai era um exemplo de cuidado e minha mãe, de força, e hoje eu consigo repassar isso aos meus filhos”.
Gessi Fátima, mãe de jorge, e sua filha
arquivo pessoal
Jorge afirma que a ausência do pai biológico foi amenizada com a presença do pai que considerou durante a vida, e que isso o tornou forte para assumir responsabilidades que não cabiam a ele, na época, mas que se faziam necessárias.
“Hoje eu faço tudo o que posso para dar o melhor para os meus filhos, seja condição financeira ou outras formas de ajuda, faço tudo o que está ao meu alcance”, conclui.
Jorge e seus dois filhos biológicos
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Ausência da figura paterna influencia nas relações sociais futuras
A psicóloga especializada em saúde mental, Ana Lucia Corrêa de Sousa, 57 anos, que desenvolve atividades na área clínica, psicologia jurídica e do trabalho há 29 anos, explica que a realidade de Jorge na sua infância e adolescência é o retrato de muitas famílias paraenses, as chamadas monoparentais.
“A maioria dos casos em que eu atendo se trata de mãos que precisam passar o dia fora de casa para arcar com o sustento da família e alguns jovens passam a assumir o papel do cuidado do lar. Isso reflete diretamente do desempenho social, acadêmico e profissional, pois muitos acabam largando os estudos, outros abandonam as famílias por não suportarem a carga imposta a eles e há também os que entram no mundo da criminalidade”, pontua.
Ana Lúcia Corrêa
arquivo pessoal
A profissional de saúde mental afirma que o abandono de um pai pode acarretar no filho o sentimento de baixa autoestima, pode desenvolver mais facilmente condições clínicas, como ansiedade e depressão, e até ter dificuldade de se relacionar com o meio social por sempre desconfiar de que o abandono voltará a ocorrer. No entanto, ela reforça que isso não deve ser determinante para os casos.
“Devemos sempre ressaltar que essas consequências na vida de quem foi abandonado pelo pai não devem ser fatores determinantes. Há diversos outros contextos onde esse indivíduo consegue ter um entendimento diferente da realidade e assim, como no caso do Jorge, reverter isso”.
Ainda de acordo com Ana Lúcia, o meio onde a pessoa é criada impacta diretamente na forma como esse cidadão vai construir a sua história no futuro.
“Sabemos que o meio onde o indivíduo nasce e vive influencia diretamente nas oportunidades e dificuldades, tanto interna quanto externamente, que ele vai ter ao longo da vida, mas há esses casos em que, ao invés da mágoa, essa vítima de abandono consegue pegar isso como exemplo para praticar ações diferentes lá na frente”.
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* sob supervisão de Gil Sóter
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