
Pesquisadora da USP criou dicionário que explica origem de sobrenomes presentes em mais de 80% dos nomes brasileiros. Documento pode oferecer pistas sobre a memória familiar das pessoas e ajudar a entender como nossos antepassados viviam. Dicionário da USP revela origem dos sobrenomes brasileiros
Por trás de um sobrenome comum como Rodrigues, por exemplo, se esconde séculos de história familiar, social, política e linguística. O nome, que originalmente significava “filho de Rodrigo”, é um exemplo de patronímico.
A categoria de sobrenome surgiu no século XII para identificar a pessoa como filho de alguém em comunidades onde o primeiro nome já não era suficiente para distinção.
Neste caso, são derivados do pai ou um ancestral paterno — daí nomes como Rodrigues, Antunes ou Domingues. Ou seja, se você tiver um desses sobrenomes, provavelmente, alguém da sua família distante já se chamou Rodrigo, Antônio ou Domingos.
Quem explica é a pesquisadora Letícia Santos Rodrigues, doutora em linguística pela Universidade de São Paulo (USP). Nascida em Salvador, na Bahia, a pesquisadora se apaixonou pela onomástica — a ciência que estuda os nomes próprios — ainda na graduação, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi lá que, ao lado de uma professora, começou a se aprofundar no estudo da antroponímia, ramo da onomástica dedicado aos nomes de pessoas.
No doutorado, ela dedicou cinco anos à investigação de sobrenomes próprios tipicamente brasileiros e suas origens.
A pesquisadora analisou ao todo cerca de 50 mil sobrenomes, mas 1.707 integram o dicionário, devido à repetição ou à divergência na grafia, a exemplo de Sousa e Souza. (confira o seu sobrenome na tabela abaixo).
“Os sobrenomes portugueses foram escolhidos por serem um dos povos que mais emigraram para o Brasil no período de meados e final do século XIX. Além, é claro, de serem a nação colonizadora”, diz Letícia ao g1.
“Não queria fazer um trabalho acadêmico chato, que só especialista lê. Queria que qualquer pessoa pudesse consultar e entender o significado do próprio nome ou do nome da família.”
Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2016, cerca de 87,5% dos brasileiros possuem sobrenomes de origem ibérica, que inclui tanto portugueses quanto espanhóis.
O dicionário que desenvolveu no doutorado foi elaborado a partir de consultas em documentos históricos, como:
fichas de registro de matrícula de imigrantes portugueses recém-chegado ao Brasil que se dirigiram à Hospedaria de Imigrantes do Brás entre os anos de 1887 e 1889;
passaportes dos portugueses que imigraram para o Brasil entre os anos de 1888 e 1890;
documentos preservados pelo Arquivo da Universidade de Coimbra, em Portugal;
lista de aprovados na primeira chamada da Fuvest, em 2017.
Letícia Santos Rodrigues dedicou cinco anos à investigação de sobrenomes próprios tipicamente brasileiros
Arquivo pessoal
Além de auxiliar na pesquisa da identidade histórica de milhares de brasileiros, o dicionário desperta curiosidade nas pessoas, conta Letícia.
“O nome é algo muito próprio, se você vê o seu nome, você acaba ou se reconhecendo, ou reconhecendo alguma característica da sua família”, diz.
Para catalogar os 1.700 sobrenomes, a pesquisadora desenvolveu oito categorias:
Patronímicos: indicam filiação paterna. Exemplos: Rodrigues, Antunes, Domingues. A marca “es” é típica da língua portuguesa.
Profissões e materiais: derivam de ofícios, principalmente masculinos. Ex: Ferreiro, Bronze, Machado.
Características físicas e comportamentais: traços físicos, temperamento ou comportamento marcante. Ex: Salgado (alguém espirituoso), Batata (usado pejorativamente para descrever uma deficiência física).
Regionais, vegetação ou origem: ligados à vegetação ou geografia. Ex: Pereira, Oliveira, Lage, Pedroso, Português, Brasileiro.
Religiosos: referências a santos ou à Igreja Católica, grande influenciadora da cultura portuguesa. Ex: Santos, Nascimento, Bonfim.
Animais: reúne sobrenomes derivados de nomes de animais, muitas vezes relacionados a características simbólicas, comportamentais ou de prestígio. Ex: Pinto, Coelho, Lobo.
Antropônimos: nomes próprios de pessoas, sejam prenomes (nomes de batismo) ou sobrenomes (nomes de família). Ex: Abraão, Paulino, Vitor, Duarte.
Agnomes: usado para diferenciar pessoas com o mesmo nome e sobrenome, geralmente quando há um pai, filho, neto, sobrinho com o mesmo nome. Ex: Filho, Júnior, Neto.
A pesquisadora analisou ao todo cerca de 50 mil sobrenomes, mas integraram o dicionário 1.707 itens, devido à repetição desses sobrenomes ou à divergência na grafia, a exemplo de Sousa e Souza.
Letícia defendeu sua tese em 2024, mas disse que vai seguir alimentando o projeto do dicionário. Por enquanto, o documento completo pode ser acessado na pesquisa de 500 páginas “Caminhos da imigração: os sobrenomes que contam histórias”.
O g1 listou os sobrenomes nas categorias que pesquisadora classificou em seu doutorado.
Esses sistemas de sobrenomes surgiram por necessidade prática. Durante séculos, bastava um único nome para identificar alguém. Mas conforme as sociedades se expandiram e se tornaram mais complexas, foi necessário criar novas formas de distinção porque até os patronímicos ficaram saturados.
No século XV, segundo a pesquisadora, as sociedades passaram a adotar alcunhas.
“Inicialmente, não tinham sentido tão oficial de sobrenome como hoje. Era possível falar ‘Maria Rodrigues Ferreiro’, porque é aquela Maria, filha de Rodrigo, que é Ferreiro. Ou Maria Rodrigues Pedroso, porque é a Maria Rodrigues que mora naquele lugar cheio de pedras”, explica a pesquisadora.
Há sobrenomes ligados à profissão — como Ferreiro ou Bronze —, à vegetação — como Pereira e Oliveira —, à geografia — como Pedroso ou Lima —, e até à personalidade ou condição física, como Salgado, que significava uma pessoa espirituosa, com “sal”, em oposição à ideia de alguém sem graça.
“Encontrei alguns casos de matronímicos, que é repetir o nome da mãe, da madrinha, da tia. Mas não era comum. Se olharmos os aspectos profissionais, eram todos ligados à masculinidade, porque as mulheres não exerciam as mesmas profissões na época. Você não vê um sobrenome ‘Cozinha’, não tem João Cozinha ou João Cozinheiro. Os matronímicos eram muito específicos e mais apagados”, explica a pesquisadora.
“Um dos casos curiosos também é o de Nonato, do latim nonatus, o ‘não nascido’, usado para designar crianças nascidas por cesariana”, referindo-se à história de São Raimundo Nonato, santo católico português, nascido no ano 1200.
Na história, a mãe de Raimundo morreu durante o parto, e ele foi extraído vivo da sua barriga — há registros que dizem se tratar da primeira cesariana. A tradição, porém, deu conta da lenda e, nascidos de cesariana a partir do século XIII, herdavam o sobrenome Nonato.
“Quando essa organização é estabelecida e fixa, a gente passa a herdar dos nossos pais. Então, hoje, o sobrenome não é algo que nos define, é apenas o nome de família. Uma família Nonato, por exemplo, não é toda de cesariana. O nome veio de algum lugar mais recuado e, normalmente, a gente nem consegue alcançar”, explica.
O dicionário que desenvolveu no doutorado foi elaborado a partir de consultas em documentos históricos, como o Acervo da Universidade de Coimbra, em Portugal
Arquivo pessoal
Transformações históricas
Apesar de ser um estudo de uma ciência linguística, ao ler o dicionário é importante pensar em história, direito, geografia e até psicanálise. Segundo a pesquisadora, não dá para entender um sobrenome sem considerar o contexto social e político que o produziu.
Por que temos tantos sobrenomes como Pontes, Santos, Campos? O que há por trás deles? A resposta passa por um mergulho na Igreja Católica, nos ofícios medievais, na geografia rural de Portugal e no imaginário coletivo da época.
Ou seja, o trabalho evidencia como o nome de alguém pode ser tanto um traço de identidade pessoal quanto um vestígio de transformações históricas (veja distribuição de cada categoria abaixo).
É o caso de sobrenomes derivados de topônimos, ou seja, nomes geográficos próprios de cada região, como Lage, Marinho, Brasileiro ou França, que revelam deslocamentos e raízes territoriais.
Ou nomes como Batata, associados a características físicas, mesmo que pejorativamente. “Será que hoje esse nome seria aceito?”, provoca Letícia, refletindo sobre as alcunhas em contextos atuais.
A pesquisadora ressalta ainda que muitos sobrenomes consolidados perdem, ao longo do tempo, seu significado original. “Você vê alguém chamado Natália Figueira e não pensa na árvore. O nome se esvazia, vira apenas marca”, diz.
Mas esse esvaziamento não impede que as pessoas se interessem por saber mais sobre suas origens. Ao apresentar sua pesquisa, Letícia costuma despertar curiosidade e surpresa. “As pessoas querem saber o que o nome delas significa.”
Em busca de liberdade
A linguista também estudou a origem de nomes que classificou como “inovadores”. Segundo ela, muitos deles foram criados no período da pós-abolição da escravidão no Brasil, em 1888, como Francinaldo, Cleslandir ou Julivaldo.
“A lógica por trás deles era profundamente social: muitas pessoas que foram escravizadas não queriam carregar nomes como João, José ou Manoel, dados pelos antigos senhores, mas também não tinham mais acesso aos nomes africanos originários”, explica.
Sem internet, sem escola e sem vínculos culturais de referência, muitos criaram seus próprios nomes com base no que conheciam.
“Libertos que não queriam manter os nomes dos senhores portugueses e, sem acesso aos nomes africanos originais, criavam novas combinações a partir de padrões fonéticos conhecidos. Assim surgiram nomes como Francinaldo, a partir de Francisco e Arnaldo”, conta Letícia.
Segundo a pesquisadora, na época do Brasil Colônia, a escolha pelos nomes e sobrenomes demonstravam um desejo de liberdade.
“É uma forma de resistência pela linguagem. Um modo de se ‘reidentificar’ quando tudo o que te deram foi apagamento. Era uma tentativa de marcar identidade sem repetir os nomes dos senhores. Em um país como o Brasil, onde a memória familiar muitas vezes se perdeu, os sobrenomes oferecem pistas. Eles são rastros linguísticos de quem foram antepassados da população que forma o país hoje.”
Letícia conta que pretende publicar o dicionário de forma independente, por uma editora universitária, para que possa chegar a mais leitores. “É um trabalho em andamento. Meu sonho é que ninguém abra e diga: ‘Meu sobrenome não está aqui’.”