Fungo da série The Last of Us pode afetar humanos e causar nova pandemia? Entenda o que diz a ciência


Estudo analisou o que pode acontecer com os fungos a partir das mudanças climáticas e faz um alerta sobre o risco para a saúde. Na série, fungo ataca humanos e controla seus corpos
Divulgação/ HBO Max
Já imaginou se existisse um fungo que infecta humanos e consegue controlar o corpo deles? Parece coisa de um filme de ficção científica, né? E é. Esse é o roteiro da série The Last of Us. E o que isso tem a ver com ciência? Nas últimas semanas, começaram a circular posts nas redes sociais sugerindo que um estudo feito pela Universidade de Manchester aponta que esse fungo pode causar uma pandemia no mundo com as mudanças climáticas.
O g1 leu a pesquisa. Um spoiler: não é nada disso.
➡️ O estudo existe e foi feito por especialistas em fungos. A análise traz um alerta importante sobre como, diante das mudanças climáticas e de um mundo mais quente, fungos podem acabar se adaptando e isso aumentar o número de doenças em humanos e plantações. Porém, não cita o fungo da série e nem mesmo aponta uma possível pandemia.
Se você não viu a série, ela se baseia em um jogo de videogame. No enredo, humanos são contaminados pelo fungo Cordyceps, que passa a controlá-los e dizima a humanidade. O fungo existe, mas o que a série mostra é pura ficção científica. Isso porque, na vida real, o Cordyceps infecta insetos, não seres humanos.
Por causa da série, o estudo viralizou. Ele foi feito por pesquisadores das universidades de Manchester, da Escola de Medicina Tropical de Liverpool e do Centro de Ecologia e Hidrologia do Reino Unido. A divulgação do artigo ocorreu no início de maio. A proposta do estudo foi fazer um alerta sobre o impacto dos fungos na saúde, para que mais estudos sobre o assunto possam ser feitos.
➡️ Mas o que especialistas com quem o g1 conversou explicam é que, assim como a série, as pessoas estão extrapolando a realidade.
Abaixo, nesta reportagem, o g1 explica:
por que fungos podem ser um problema;
o que diz o estudo e como ele foi feito;
o que é ficção e o que é realidade;
o que especialistas dizem sobre os dados.
Fungos estão em toa parte e na maioria das vezes são inofensivos
Getty Images
Por que fungos podem ser um problema?
Os fungos estão por toda parte: no solo, no ar, nas plantas, em ambientes fechados e até sobre a pele humana.
Eles se multiplicam principalmente por meio de esporos, que são estruturas microscópicas liberadas no ar ou em superfícies. Quando encontram um ambiente com umidade, matéria orgânica e temperatura favorável, esses esporos germinam e formam novos fungos. É por isso que bolores aparecem rapidamente em frutas, pães e outros alimentos deixados fora da geladeira ou armazenados por muito tempo.
A maioria é inofensiva e não causa grandes problemas de saúde. As doenças mais comuns relacionadas aos fungos são as dermatoses, caspa e a candidíase.
No entanto, para pessoas imunossuprimidas, como portadores de HIV, pessoas em quimioterapia, transplantadas e com problemas respiratórios graves, os fungos podem ser um problema e evoluir para doenças mais graves. Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que cerca de 6,5 milhões de infecções fúngicas são diagnosticadas por ano e elas causam 3,8 milhões de mortes.
Além disso, eles também afetam os alimentos. A estimativa é de que 20% de toda a produção de alimentos do mundo se perca ainda antes da colheita por causa de fungos. Ou seja, isso é um volume enorme.
Uma fruta embolorada estraga todas as outras?
🚨 Este ano, a OMS publicou um relatório sobre a falta de medicamentos e diagnósticos para doenças invasivas causadas por fungos. Segundo o órgão, os fungos são uma questão de saúde pública e na última década, apenas quatro novos antifúngicos – remédios que combatem as doenças causadas por eles – foram aprovados por autoridades regulatórias nos Estados Unidos, da União Europeia ou da China.
Os fungos já impactam a saúde e a economia, isso em um cenário de mudanças climáticas pode ser ainda mais grave. Em 2024, vivemos o ano mais quente da Terra. As temperaturas no planeta estão subindo, reflexo das mudanças climáticas, causadas pela maior emissão de gases do efeito estufa.
Para além desse cenário de calor, as mudanças estão causando mais eventos extremos, como enchentes, tornados e secas – o que também pode influenciar a proliferação de fungos.
Fungos afetam 20% de todos os alimentos no mundo
misterbisson on Visualhunt
O que diz o estudo e como ele foi feito
O estudo tinha como objetivo analisar se fungos patógenos podem expandir sua área geográfica com as mudanças climáticas nos próximos 100 anos. Fungos preferem temperaturas amenas e com o aquecimento, eles podem aparecer mais em regiões onde hoje não são tão comuns, por serem mais frias.
Para descobrir se isso era fato, eles usaram um modelo matemático para entender como as três espécies de Aspergillus, fungo que infecta humanos e plantas, se comportariam ao longo do tempo com as mudanças climáticas.
Na análise, eles usaram os dados de previsão de temperatura no futuro até 2100. Esses dados existem, são seguros e são usados, por exemplo, para ajudar a entender o impacto das emissões ao longo do tempo, observando o que ocorreu no passado e o que vem ocorrendo.
Com isso, eles conseguiram prever as temperaturas pelo mundo para observar onde o fungo conseguiria sobreviver e se proliferar.
🔴 Diferente do que sugerem os conteúdos nas redes sociais, o estudo não aponta uma pandemia global. Ele mostra uma mudança de cenário na qual regiões onde hoje eles são mais comuns deixariam de ser e outras em que ele pode aumentar ou até passar a existir.
Mas, atenção: isso, por si só, é um alerta. A mudança faria com que países que não têm um acompanhamento mais rigoroso, porque eles são menos comuns, possam ser afetados. Isso faria com que pessoas e plantações fiquem mais vulneráveis.
➡️ De acordo com a análise, países na África e no Brasil, por exemplo, podem ter uma menor prevalência de alguns dos tipos de fungos Aspergillus. No entanto, haveria mudança no perfil no Norte do globo, principalmente na Ásia e na Europa.
Na Austrália, por exemplo, um dos tipos de Aspergillus, é presente em uma área no país que afeta 5 milhões de pessoas. A previsão com o modelo é que no cenário mais extremo do clima, esse número possa chegar a 16 milhões – isso é mais da metade da população da Austrália hoje, que é de 26 milhões de pessoas.
O que é ficção e o que é realidade
🔴 Ficção:
Está na série, mas o Cordyceps NÃO pode infectar humanos, controlar seus corpos e causar uma pandemia global.
Está nas redes, mas o estudo NÃO diz que o Cordyceps pode se adaptar com o aquecimento global e causar uma pandemia.
✅ Realidade:
O estudo não menciona o fungo da série, não fala em pandemia e não prevê infecção em humanos como na ficção.
O estudo aponta que, com as mudanças climáticas, fungos podem se espalhar para novas regiões e causar mais infecções em pessoas e plantas.
O estudo não tem qualquer relação com o cenário citado na série.
O que dizem os especialistas
Os especialistas reforçam que a pesquisa foi distorcida em alguns conteúdos online, mas que ela é importante, tem boa metodologia e traz um alerta sobre o impacto das mudanças climáticas.
Gustavo Henrique Goldman, especialista em fungos, professor na Universidade de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), explica que a mudança na temperatura desorganiza ecossistemas, o que também afeta os fungos e pode trazer riscos para a humanidade a longo prazo.
“O aumento global da temperatura pode fazer com que fungos que antes não estavam em alguns lugares se proliferem e isso é um risco para a saúde. Existe pouco financiamento em pesquisa para esse tema, pouco desenvolvimento de tratamentos. Então, é uma pesquisa bem relevante como alerta sobre um ponto que é necessário observar”, explica.
No entanto, o especialista reforça que o estudo não mostra que seria possível uma pandemia de forma imediata, apesar de citar alguns surtos de doenças fúngicas pelo mundo. Além disso, a projeção não leva em conta, por exemplo, a resposta da humanidade no caso do avanço dessas doenças.
“Basta ver como a resposta para a gripe aviária foi rápida, com a identificação e controle sem que pessoas fossem afetadas. Não é como se isso fosse acontecer como em um filme de ficção científica, sem que pudéssemos intervir. É justamente essa a importância da pesquisa e da ciência, prever para que as autoridades possam se preparar para isso”, explica Goldman.
Daniel Dahis, que é PHD em biotecnologia, também reforça que o estudo traz pontos importantes e é um desenho de um cenário futuro. Ou seja, serve como um alerta de algo pode acontecer, uma hipótese caso nenhuma intervenção seja feita. Mas não é o anúncio de uma pandemia por um fungo.
“A pesquisa está nos dizendo o que pode acontecer caso as temperaturas subam e ignoremos a questão dos fungos. É um tema que não é tão falado, cita que são necessárias mais pesquisas. Os pesquisadores não estão fazendo determinações e nem tratando isso como uma possibilidade de pandemia”, explica.
➡️ O pesquisador também aponta que é preciso cuidado com os dados porque o estudo também não teve uma revisão por pares, processo fundamental na ciência em que outros especialistas da área avaliam rigorosamente a metodologia e os resultados de uma pesquisa antes de sua publicação final.
Dahis, que fala sobre ciência nas redes sociais, ainda reforça que conteúdos que distorcem pesquisas são preocupantes porque confundem as pessoas sobre o processo científico e a importância do que está sendo, de fato, debatido.
“Os conteúdos estão extrapolando o que a pesquisa diz, estão criando um cenário de filme. Mas a pesquisa existe, tem uma metodologia, debate um ponto importante e as pessoas podem acabar ignorando essa produção de ciência pela forma como isso vem sendo contado. Isso estimula o negacionismo a longo prazo”, explica.
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