
Jéssica da Silva* foi estuprada pelo homem que havia começado a namorar recentemente, após marcar um encontro em sua própria casa. Muito abalada com o trauma, a jovem desenvolveu síndrome do pânico e não teve coragem de denunciar o agressor, pedir ajuda e nem ir trabalhar.

Vítimas de violências são atendidas pelo Navit, em SC – Foto: Imagem gerada por IA/ND
Foi uma colega do serviço de Jéssica que notou sua ausência e, após não conseguir contato por telefone com ela, a encontrou muito abalada em sua residência. Já tinham se passado 72 horas e ela estava ciente de que havia sido vítima de um crime, mas não tinha coragem para chamar a polícia e não confiava em outros homens para relatar sua história, mesmo que eles fossem autoridades.
No entanto, sua amiga conhecia o trabalho do Navit (Núcleo de Atendimento a Vítimas de Crimes) de Florianópolis e entrou em contato com a central de atendimento pelo WhatsApp.
Com o intermédio da organização, uma viatura da Rede Catarina – um programa da Polícia Militar composto por policiais mulheres direcionado à prevenção da violência doméstica – foi até a casa de Jéssica e a acompanhou até a delegacia para registro do boletim de ocorrência e exame de corpo de delito.
Nos dias subsequentes, Jéssica voltou a ser atendida pelo Navit e recebeu orientação jurídica para que tivesse acesso aos próprios direitos e colaborasse para que seu agressor fosse punido. O caso dela foi um dos 1.500 casos acolhidos pelo núcleo na capital desde que começou as atividades, em 2022.

Sala foi pensava para receber mulheres e crianças, que são a maioria das vítimas atendidas – Foto: Gabrielle Tavares/ND
Como qualquer outro cidadão, Jéssica tinha o direito à proteção, assistência à saúde e apoio jurídico, serviços gratuitos oferecidos por instituições públicas. Contudo, na prática, a burocracia desestimula as vítimas a levarem adiante as denúncias contra seus agressores e a reivindicarem o que precisam.
A promotora de Justiça Bianca Andrighetti Coelho pontua que, “por mais que muitas vezes esses serviços existam, nem sempre são de fáceis acessos, ou a vítima tem conhecimento”.
“Muitas vezes, a vítima só procura a delegacia de polícia e se restringe a isso”.
“Chegando ao sistema de Justiça, numa audiência, ninguém nunca parou para perguntar para ela, nesse sistema, quais seriam as necessidades reais dela e quais os direitos foram restringidos por conta do crime que sofreu”, completou a promotora, coordenadora do CCR (Centro de Apoio Operacional Criminal e da Segurança Pública) e estadual do Navit.
Desconhecimento dos próprios direitos
Em casos de violência doméstica, existe o agravante de que a mulher pode desconhecer o próprio papel de vítima, ou seja, não saber que passa por um crime passível de ser punido pela legislação.
“Tem muitos casos de violência psicológica que a mulher demora para tomar consciência de que aquilo que ela sofre no relacionamento é um crime, que temos uma legislação no Código Penal que pune a violência psicológica. Falar sobre isso é um meio de chegar até essas vítimas que ainda não tiveram coragem, muitas vezes, de tomar uma atitude”, destacou Bianca.

Sede do Navit fica no MPSC em Florianópolis – Foto: Gabrielle Tavares/ND
Por dentro do Navit
- O que é: composto por 21 instituições, uma rede integrada de órgãos governamentais e não governamentais, que têm como missão oferecer suporte completo e humanizado às vítimas de crimes cometidos com violência e grave ameaça, assim como a seus familiares.
- Objetivo: garantir acesso à informação, orientação jurídica, proteção, reparação, acompanhamento e encaminhamento para atendimento psicológico, social e de saúde.
- O que faz: através de profissionais especializados, o núcleo acompanha a vítima desde o momento da ocorrência do crime até a conclusão do processo, incluindo a fase judicial e a execução penal.

Promotor Jádel da Silva Júnior, coordenador do núcleo em Florianópolis – Foto: Gabrielle Tavares/ND
Uma das vítimas atendidas Navit relatou que viu no núcleo o um refúgio de apoio aos seus direitos em um momento de vulnerabilidade. “Eu queria uma medida protetiva. [No Navit] explicaram todos os meus direitos, como que eu tinha que fazer e com quem deveria entrar em contato”, relatou. Ela preferiu não ser identificada.
“Também me deram apoio emocional, com conversas, me acalmando e me mostrando que o que eu estava fazendo no momento era o que tinha que ser feito. Hoje eu tenho liberdade.”
Essa abordagem interdisciplinar e intersetorial tem um propósito: oferecer acolhimento mais efetivo e garantir que as vítimas tenham seus direitos assegurados.
Foi através do Navit que diversas instituições ao longo do acompanhamento de um caso de violência passaram a se integrar ainda mais, segundo o promotor Jádel da Silva Júnior, coordenador do núcleo em Florianópolis.
“Constatamos que não havia integração entre as instituições dos sistemas de saúde, assistência social, habitacional, educacional, de segurança pública e justiça. Embora cada um tivesse suas iniciativas, principalmente da assistência social e da saúde, nós víamos essa falta de integração”, reforçou o promotor.
Silva Júnior ressaltou que o núcleo surgiu da necessidade de acolher as vítimas marginalizadas, que não tinham acesso aos próprios direitos por falta de informação, educação ou estrutura. Objetivo que se consolidou na prática, já que a maioria dos atendimentos é realizado em pessoas em situação de vulnerabilidade. “Claro que não descartamos ninguém, já atendemos pessoas com maior poder aquisitivo, servidores”.

Sala de atendimento presencial do Navit, onde as vítimas podem buscar acolhimento – Foto: Gabrielle Tavares/ND
Vítimas de violência doméstica dominam atendimentos
Por mais que o núcleo receba vítimas de qualquer tipo de violência, as que mais procuram atendimento são mulheres que sofreram violência doméstica de todos os tipos, física, psicológica, sexual, entre outras.
“A maior parte [dos atendimentos], 80%, são para mulheres cis. De todos os crimes, muitas vezes nem foram elas que sofreram, mas o filho, o amigo, o companheiro, a companheira. Muitas dessas mulheres vêm por chamada de vídeo, elas ligam da rua, da casa da amiga, de qualquer lugar”, relatou o promotor.
Segundo o Observatório da Violência Contra Mulher, que usa dados da Gerência de Estatística e Análise Criminal da Secretaria de Estado da Segurança Pública, Santa Catarina registrou 74.510 ocorrências de violência doméstica em 2024, sendo 35 mil apenas de ameaça, 11 mil de injúria e quase 13 mil de lesão corporal dolosa.

Quantidade de registros de ocorrências de violência contra a mulher – Foto: Gabrielle Tavares/ND
Em relação aos casos de feminicídio, houve uma redução de 10,5% no ano passado em relação a 2023, sendo 51 casos contra 57. Esse número representa uma taxa de 0,63 vítimas a cada 100 mil habitantes, sendo o segundo menor índice desde 2020. Neste ano, foram 8 mortes até o fim do mês de março.
Especificamente na Grande Florianópolis, que inclui as cidades de Florianópolis, São José, Palhoça e Biguaçu, foram registradas 440 violações contra mulheres em 2024.
‘Pelo amor de Deus, ele vai me matar’
Não é necessário procurar a polícia ou registrar boletim de ocorrência antes de ligar para o Navit. Um caso de uma vítima que decidiu primeiro procurar o núcleo marcou os atendimentos. A mulher acionou enquanto ainda estava em perigo e, mesmo sem medida protetiva, seu agressor acabou preso.

Vítima de violência doméstica foi salva pelo Navit, que acionou a Rede Catarina – Foto: Imagem gerada por IA/ND
“A vítima estava dentro do banheiro, com a porta trancada e dava para ouvir o barulho do agressor, o companheiro dela, quebrando tudo na casa, batendo na porta. Ela pedia ajuda e falava: ‘pelo amor de Deus, ele vai me matar’.”
“Graças a parceria com a Rede Catarina, mesmo ela não tendo a medida protetiva, os policiais militares foram até a vítima e prenderam o sujeito”, lembra o coordenador.
A partir de 2023, foram criados sete novos núcleos além de Florianópolis para ampliar o atendimento em todo o território de Santa Catarina. As novas unidades estão localizadas em Itajaí, Blumenau, Joinville, Lages, Chapecó, São Miguel do Oeste e Criciúma.

Instituições que compõem o Navit – Foto: Navit/Divulgação/ND
Vítima como prova
Coordenadores do Navit destacam a importância da Justiça em não apenas punir o agressor mas também reparar a vítima. Segundo os promotores, em muitos casos, as vítimas são tratadas apenas como mais uma prova dentro de um processo para prender um culpado, e não como alguém que passou por uma experiência traumática.
A palavra vítima, do latim victima, surgiu na Roma Antiga para se referir a um animal sacrificado em rituais religiosos, realizados como forma de agradecimento ou para pedir favores aos deuses. Com o tempo, o significado se expandiu e passou a ser usado para definir pessoas que sofriam danos ou perdas, seja em um contexto religioso, social ou de violência.

Profissionais são treinados para atendimento humanizado no Navit – Foto: MPSC/Divulgação/ND
No século XX, o conceito ganhou até um campo de estudo dentro da criminologia, introduzido pelo criminólogo israelense Benjamin Mendelsohn na década de 1940. Na época, ele percebeu que a vítima nem sempre era um agente totalmente passivo e podia ter diferentes graus de envolvimento nos crimes.
A vitimologia começou a ganhar força após a Segunda Guerra Mundial, quando se percebeu a necessidade de entender melhor o impacto da violência nas vítimas e garantir seus direitos. Nos anos 1970 e 1980, o campo se consolidou com a criação de políticas públicas voltadas à proteção e apoio às vítimas.
A vítima era invisibilizada, não era vista como um sujeito de direito. Era usada como um produto que pudesse fornecer para essas instituições elementos, subsídios – promotor Silva Júnior
“Todo o nosso trabalho é dar valor para a vítima, visibilidade para essa pessoa, especialmente aquelas mais vulneráveis socialmente, as mais afastadas dos meios de comunicação, das informações, justamente essas que não teriam acesso a advogados, por exemplo”, continua o promotor.
No entanto, Silva Júnior destaca que o trabalho de acolhimento às vítimas ocorre de maneira paralela à seleção de provas e evidências, não interfere na investigação, no julgamento, tampouco reduz os direitos do suspeito.
“É uma possibilidade para nós operadores de direito, promotores de Justiça, juízes, advogados, atuarmos sabendo e entendendo primeiro as necessidades dessa vítima, nos preocupando com as necessidades dessa vítima e pensando de que forma nós vamos garantir esses direitos que ela perdeu por conta do crime”, completou Bianca.
Quem protege o público LGBTQIAPN+ do preconceito estrutural?
Um dos públicos inviabilizados pelo sistema de segurança que encontrou no Navit uma possibilidade de denunciar casos de violência e preconceito, sem se sentirem menosprezados, foi o LGBTQIAPN+, apontou o promotor, principalmente entre pessoas trans.
“Muitas têm receio de ir às delegacias, pelo que elas relatam para a gente depois, que não adianta fazer B.O, que elas vão lá e são desmotivadas, ridicularizadas. Ou então que é revertida a situação, ou seja, são revitimizadas. Muitas dessas pessoas entram em contato diretamente com a gente”, destacou.

Navit foi para as ruas de Florianópolis no Carnaval para acolher e conscientizar o público – Foto: Gabrielle Tavares/ND
Um dos casos foi o de Gabriel Leonel, de 32 anos, atacado com spray de pimenta pela Guarda Municipal quando estava andando de mãos dadas com seu namorado, de 33, voltando do Carnaval no Centro de Florianópolis.
Vídeo que registrou o momento repercutiu nas redes sociais. Ao ND Mais, Gabriel disse que o spray atingiu seus olhos e os de seu namorado, e que demoraram horas para chegar em casa após o incidente devido a ardência que sentiram.
“Não tivemos nem a oportunidade de falar. Fomos no caminho que sempre percorremos para casa e eles vieram já de forma agressiva, sem dar espaço para a gente explicar para onde estávamos indo. Cheguei a tentar verbalizar, mas já vieram com o spray de pimenta”, lamentou.
Guardas municipais lançaram um jato de spray de pimenta no rosto de dois foliões por volta das 2h40 da manhã em Florianópolis – Vídeo: Divulgação/Floripa LGBT/ND
Em nota, a GMF afirmou que as guarnições estavam direcionando o público para a saída do bloco quando os dois foliões foram agredidos. Os agentes informaram que a maioria acatou as ordens e alegaram que “não houve uso de força física, apenas comandos verbais e equipamentos de dispersão, como spray de pimenta”.
“O agressor também precisa de ajuda”
A psicóloga Luciane Gobbo Brandão é coordenadora do curso de Psicologia da Univali (Universidade do Vale do Itajaí) e responsável técnica pela clínica de atendimento universitário, que atua em parceria com o Navit.
São mais de 50 universitários que atendem as vítimas encaminhadas pelo núcleo. Todos são alunos do 7º ao 10º período do curso e são supervisionados de perto pelos professores.
Devido a alta demanda, os atendimentos são pontuais, cada vítima recebe de 8 a 10 sessões psicológicas.
A especialista acredita que o atendimento, por mais que seja individual, tem o poder de transformar a vida de todos os envolvidos, desde os familiares da vítima ao agressor. Desta forma, novos ciclos de violência são interrompidos antes de prejudicar novas pessoas.
“É importante a gente lembrar que esse agressor também precisa de ajuda, de tratamento, por isso hoje a justiça impôs a participação nos grupos reflexivos. A violência está muito enraizada, é cultural. Aquele agressor que cresceu, muitas vezes, apanhando, acredita que de uma forma violenta vai conseguir o que deseja. Ele enxerga a mulher como um objeto”, apontou.
Luciane acredita que a união de tantas instituições é o maior diferencial do projeto e defende que o foco deve ser sempre o impacto positivo na sociedade.
“O maior impacto é a transformação social, de todos os atores, pautada na ciência, que busca promover mais autonomia. É uma mudança estrutural que a gente precisa fazer. Quando percebo que essas mulheres, meninas, têm a vida transformada, o trabalho é recompensado, vejo que a sociedade é transformada”.
Debater o assunto é fundamental para romper o ciclo de violência, afirma a psicóloga, pois contribui para desconstruir estereótipos sobre as vítimas na sociedade, mostrando para quem ainda não teve coragem de denunciar seus agressores que existe vida após o trauma.
“Independente da classe social, as pessoas ainda se sentem envergonhadas em serem vítimas. A menina que foi estuprada pensa que teve culpa, o trabalhador que sofre assédio acha que teve culpa, a mulher que sofre violência acha que teve culpa. O agressor geralmente manipula a vítima para alcançar o que se deseja”, completou.
Precisa de atendimento? Veja como entrar em contato com o Navit
- Pessoalmente: no edifício Vintage Executive Center, na rua Júlio Moura, nº 30, Centro de Florianópolis;
- E-mail: [email protected];
- Ligação ou WhatsApp: (48) 99105-8943, (48) 99100-0050, (48) 99134-3495, (48) 99188-9825 e (48) 3229-7240.
*Nome fictício criado para preservar a identidade da vítima