Osmarina: Uma catarinense que não cansa de contar histórias

Santa Catarina é terra de mulheres fantásticas, com trajetórias marcante nas artes, no ensino, na política, nos negócios, na religião e nas lutas sociais. Com 95 anos, Osmarina Maria de Souza se junta a esse rol de figuras femininas talentosas e de sensibilidade à flor da pele, publicando e distribuindo livros de crônicas e poemas a quem aceitar recebê-los, sem pensar em ganhos ou glória literária.

Osmarina Maria de Souza

Osmarina Maria de Souza, 95 anos – Foto: Divulgação/ND

Militante, ela também participa de seis academias de escritores e de outras entidades de difusão do conhecimento e da leitura. Em novembro passado, foi condecorada com a Medalha Cruz e Sousa, a maior honraria da área cultural no Estado.

Com grande lucidez e disposição, Osmarina é sempre vista em lançamentos e eventos culturais da Grande Florianópolis e, se for preciso, chama um táxi ou embarca num ônibus para comparecer onde sua presença é reclamada. Ali, conta histórias, declama poesias e até entra na dança, porque nasceu no morro e tem samba no pé.

Esta semana, ela participou da posse de três novos membros da Academia Desterrense de Letras, e neste sábado a Academia Palhocense de Letras vai prestar-lhe uma homenagem. Também faz parte de associações literárias em São José, Biguaçu e São Pedro de Alcântara.

Entre tantos reconhecimentos, em novembro de 2024, Osmarina recebeu a Medalha Cruz e Sousa, a maior honraria da área da cultura em Santa Catarina – Foto: Divulgação/ND

Trajetória tardia de Osmarina

A trajetória literária de Osmarina Maria de Souza começou tarde, aos 65 anos, após se aposentar como funcionária da Secretaria da Agricultura. Antes disso, divorciada do marido militar, criou sozinha os três filhos, fez muito tricô e crochê para levantar dinheiro e foi lavadeira e empregada doméstica nas fases de maior necessidade.

Um dia, subiu as escadas do Palácio para pedir emprego ao governador Heriberto Hülse. Ficou 30 anos no Estado – “eu era uma boa datilógrafa”, orgulha-se – e só depois é que mergulhou no universo das letras, mesmo tendo estudado só até o ginásio.

Foi quando procurou o Neti (Núcleo de Estudos da Terceira Idade), na UFSC, fez muitos cursos e novas amizades, viajou para 27 cidades do Estado para discorrer sobre a história de Santa Catarina, renda de bilro e o Pão-por-Deus, benzedeiras e pescadores do Litoral.

Também foi para Portugal e para o arquipélago dos Açores, onde encontrou o nome de um antepassado que denomina uma rua na ilha da Graciosa. “Fiquei feliz com a oportunidade de falar para eles sobre a cultura açoriana no nosso Estado e sobre a literatura catarinense”, afirma Osmarina.

Certificado do recebimento da medalha Cruz e Souza – Foto: Divulgação/ND

Aluna de Antonieta

Felicidade, aliás, é o que a escritora irradia quando revive fases da vida e até as dores da idade e os percalços superados. Se orgulha por ter sido aluna da professora e escritora Antonieta de Barros, sua mestra durante três anos. Quando parou de estudar por falta de meios, a primeira deputada negra do Brasil a estimulou a continuar e aconselhou: “Leia muito, porque nós temos raízes na senzala.” Ela sabia do que estava falando.

Um pé na África, outro em Portugal

Com duas filhas acima dos 70 anos, seis netos e sete bisnetos, Osmarina Maria de Souza teve como avó paterna uma mulher que nasceu numa senzala no Ribeirão da Ilha e acabou se casando com o filho de outro senhor de escravos, no Sambaqui, para quem fazia trabalhos domésticos. Já a avó materna era descendente da família Leal, com raízes em Portugal e que fez história na caça à baleia em Santa Catarina, além de deixar, entre outras marcas, o nome da Ponta do Leal, no bairro Balneário, em Florianópolis.

Seu pai era estivador no antigo porto da Capital e a mãe, Maria Clarinda Leal, veio da roça, em Águas Mornas. Como ela, a mãe também criou os filhos lavando roupa para fora ou trabalhando como empregada. “Dona Clarinda”, um dos livros de Osmarina, é uma homenagem à mãe, que se confessava “anarfabeta”, mas queria que os filhos estudassem para ter uma vida melhor do que a dela e a de outros de sua geração.

É também sobre suas raízes que Osmarina fala nas palestras que faz. Não esquece das brincadeiras de criança, com as meninas de sua idade, usando pratos e loucinhas de barro, da cidade sem aterros e muito mais ligada ao mar, do bar Miramar, das praias do Continente e da ilha do Carvão, que desapareceu com a construção da ponte Colombo Salles. “A ganância imobiliária mudou a geografia de Florianópolis”, lamenta. “Tenho saudade da minha cidade como era antes e também das pessoas que me fizeram bem e me ajudaram”, diz, consternada.

Ela já atravessava a ponte Hercílio Luz a pé, às vezes à noite, e tinha medo de passar ao lado do cemitério que existia onde fica hoje o Parque da Luz. Para tranquilizá-la, a mãe sempre dizia: “Minha filha, os defuntos não fazem mal a ninguém.”

Velhos carnavais e a água de poço

Mais dedicada hoje à crônica do que à poesia, Osmarina de Souza não cansa de citar passagens da vida, a família, as amizades e os encontros literários, que no seu caso são praticamente semanais. Esses relatos estão em obras como “Divagando”, o livro de estreia (1994), “Relicário de Saudades”, “Era Uma Vez… Eu e a Felicidade”, “Crônicas da Vovó”, “Cerimonial de Saudade” e o recente “Histórias Para Serem Contadas”. Tem mais um livro pronto, no computador, e outra pela metade, mas um problema de visão vem atrapalhando o seu trabalho.

Entre suas conquistas, Osmarina exibe o diploma do supletivo no 2º grau que ganhou aos 79 anos de idade e os certificados de inúmeros cursos que fez em áreas como interações humanas e ação gerontológica. Ela fundou ou ajudou a fundar mais de 20 associações e academias literárias, é uma das criadoras da escola de samba Unidos da Coloninha e ostenta dezenas de diplomas, certificados, troféus e medalhas, num extenso currículo com mais de oito páginas digitadas.

Também é membro efetivo e emérito do IHGSC (Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina) e do Grupo de Poetas Livres, e ocupa uma cadeira na Academia Brasileira dos Contadores de História (da qual é cofundadora).

Em “Baú de Crônicas”, um de seus livros mais recentes, ela fala dos antigos carnavais, dos quintais da infância, do que é ser manezinho, de parentes que passaram pela escravidão, dos cinemas de rua, de colegas no ofício de escrever. Na crônica Saudade do Passado, discorre sobre a água apanhada num poço para matar a sede, dos jovens que com ela encenavam peças na velha sede da Ubro, das longas caminhadas até as praias e das retretas no coreto da praça 15 de Novembro.

Baú de Crônicas

Baú de Crônicas, livro de Osmarina – Foto: Divulgação/ND

“Nas noites de insônia, penso em coisas que no dia seguinte vão se transformar em novas crônicas – sempre na companhia de uma cervejinha”, informa. Uma das lembranças que ficaram remete ao período da Segunda Guerra Mundial, quando mesmo em Florianópolis as pessoas se escondiam com medo de bombardeios que nunca chegaram. “Os policiais pediam às famílias para apagar as luzes das casas, porque a claridade poderia atrair ataques dos ‘inimigos’”, conta, rindo.

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