Como pessoas trans já foram retratadas no Oscar, de ‘Meninos não choram’ a ‘Emilia Pérez’


Filme protagonizado por Karla Sofía Gascón é o oitavo da premiação a ter uma personagem trans em destaque. Veja como pessoas trans já foram representadas no Oscar
Estorvo para a campanha do filme “Emília Perez”, Karla Sofía Gascón já havia deixado marcas nesta edição do Oscar muito antes de ser acusada de racismo, xenofobia e islamofobia. Sua nomeação ao prêmio fez história porque, pela primeira vez, uma pessoa transgênero foi indicada à categoria de melhor atriz.
Ironicamente, “Emília Perez” recebeu críticas pela maneira como retrata a transsexualidade. No filme, Karla interpreta Manitas, um traficante de drogas mexicano que faz uma cirurgia de resignação de sexo para virar Emilia.
Há quem diga que a história reforça estereótipos negativos sobre a comunidade LGBT+ e que sua protagonista foi criada à base de clichês. Isso porque é raro encontrar filmes nos quais personagens trans vivam dilemas desconectados de sua transsexualidade. O Oscar mesmo já indicou (e premiou) longas desse estilo.
Antes de “Emilia Pérez”, sete filmes com personagens trans receberam destaque no Oscar:
‘Priscilla, a Rainha do Deserto’ (1994) – Stephan Elliott
No prêmio: Venceu o troféu de melhor figurino
O filme: Clássico do cinema queer, o musical conta uma história fictícia, na qual acompanhamos duas drag queens e uma transsexual viajando a caminho de um show
‘Tudo sobre Minha Mãe’ (1999) – Pedro Almodóvar
No prêmio: Venceu o troféu de melhor filme em língua estrangeira
O filme: Um dos mais aclamados longas de Almodóvar, o filme conta a história de uma mulher que, após a morte de seu filho, decide reencontrar o pai do garoto. Pai que, agora, é travesti
‘Meninos Não Choram’ (1999) – Kimberly Peirce
No prêmio: Venceu o troféu de melhor atriz (Hilary Swank), e foi indicado ao de melhor atriz coadjuvante (Chloë Sevigny)
O filme: É baseado na história real de Brandon Teena, homem trans assassinado em 1993 nos Estados Unidos. No filme, vemos o protagonista enfrentar dilemas de sua identidade enquanto vive um romance e sofre violência
‘Transamérica’ (2005) – Duncan Tucker
No prêmio: Indicado aos troféus de melhor atriz (Felicity Huffman) e melhor canção original (“Travelin’ Thru”, de Dolly Parton)
O filme: Bree está prestes a realizar uma cirurgia de resignação sexual quando descobre ter um filho adolescente. O fato acaba mudando seus planos e prioridades
‘Clube de Compras Dallas’ (2013) – Jean-Marc Vallée
No prêmio: Venceu os troféus de melhor ator (Matthew McConaughey), melhor ator coadjuvante (Jared Leto) e melhor maquiagem e penteado. Também foi indicado aos de melhor filme, melhor roteiro original e melhor montagem
O filme: Cinebiográfico, o longa gira em torno de Ron Woodroof, americano que criou um clube de vendas para tratamento da Aids nos anos 1980. No filme, um dos frequentadores é uma mulher trans amiga de Ron. Ela é o papel de Jared Leto.
‘A Garota Dinamarquesa’ (2015) – Tom Hooper
No prêmio: Venceu o troféu de melhor atriz coadjuvante (Alicia Vikander). Também foi indicado aos de melhor ator (Eddie Redmayne), melhor design de produção e melhor figurino.
O filme: É uma cinebiografia de Lili Elbe, artista que foi uma das primeiras pessoas do mundo a se submeter a uma cirurgia de redesignação sexual.
‘Uma Mulher Fantástica’ (2017) – Sebastián Lelio
No prêmio: Venceu o troféu de melhor filme estrangeiro
O filme: Marina é uma jovem trans que vê a vida mudar completamente após a morte de seu namorado, Orlando, cuja família é explicitamente transfóbica.
Cenas de filmes com personagens trans que tiveram destaque no Oscar
Reprodução
Há outros longas, mas seus personagens trans ou a temática trans têm pouco espaço na trama. Por exemplo, nos filmes “Um Dia de Cão” (1975) e “Traídos pelo Desejo” (1992), a transexualidade é tratada como um recurso narrativo para gerar suspense.
“Traídos pelo Desejo” (1992) teve uma campanha liderada por Harvey Weinstein, que pediu para que ninguém desse spoiler sobre o “final surpreendente” da história. Deu certo. O longa ganhou o Oscar de roteiro original — e foi indicado a outras cinco categorias, incluindo a de melhor filme.
Quem fica em frente às câmeras?
Dos sete personagens trans a receber destaque no Oscar, seis foram interpretados por atores cisgêneros — nome dado a quem não é trans. A única exceção é “Uma mulher fantástica”, protagonizado pela chilena Daniela Vega. O drama ganhou o Oscar de melhor filme internacional em 2018.
Dois anos antes, a academia tinha sido bastante criticada por nomear “A Garota Dinamarquesa” (para as categorias de melhor ator, melhor atriz coadjuvante, melhor design de produção e melhor figurino). Dirigida por Tom Hooper, a cinebiografia tem o ator Eddie Redmayne no papel de Lili Elbe, artista que foi uma das primeiras pessoas do mundo a tentar uma cirurgia de resignação sexual — no caso, para trocar seu pênis por vulva.
Eddie Redmayne em cena de ‘A Garota Dinamarquesa’
Reprodução
Para se defender das críticas que recebeu na época, o diretor Hooper argumentou que enxergava “algo feminino” no ator. E disse que as opções de artistas trans no cinema eram limitadas.
Em 2021, Redmayne se mostrou arrependido pelo trabalho. “Eu não faria isso hoje. Fiz aquele filme com as melhores intenções, mas acho que foi um erro”, disse ele ao jornal britânico “The Sunday Times”.
A interpretação de personagens trans por atores cis tem sido chamada de “transfake”. O termo é uma crítica à prática, que também esteve em outros filmes do Oscar, como “Clube de Compras Dallas” — com Jared Leto no papel de Raymond Rayon — e “Meninos Não Choram”, com Hilary Swank como Brandon Teena.
Hilary Swank em cena de ‘Meninos Não Choram’
Reprodução
‘And the Oscar goes to…’
Apesar das controversas envolvendo “A Garota Dinamarquesa”, o Oscar 2018 também premiou “Strong Island” — com a estatueta de melhor documentário. Essa foi a primeira vez que a premiação celebrou um filme dirigido por alguém trans. Seu cineasta, Yance Ford, se tornou o primeiro homem trans a ganhar uma estatueta do Oscar.
Antes de Ford, duas artistas trans passaram pela premiação, e ambas na categoria de melhor canção original. Angela Morley concorreu ao troféu duas vezes: primeiro, por “O pequeno príncipe” (1974), e depois por “O sapatinho e a rosa: A história de Cinderela” (1976). Já Anohni disputou a estatueta por “A corrida contra a extinção” (2015).
Elliot Page, de “Juno”, e as irmãs Lilly e Lana Wachowski, da trilogia “Matrix”, são artistas que hoje se declaram transgêneros e fazem parte da história do Oscar, mas, quando foram indicados à premiação, não se diziam trans.
Yance Ford, o primeiro diretor trans a vencer um prêmio do Oscar
Phil McCarten/AP
Prêmio neutro
Diferentemente de Ford, Morley e Anohni, a estrela trans de “Emília Perez” foi indicada nominalmente, o que por si só já é um marco na história da premiação. Mas mais do que isso, a indicação de Gascón chama a atenção por se tratar de uma categoria que, no Oscar, é dividida por gênero.
Nas entrelinhas, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood está defendendo a ideia de que pessoas nascidas com pênis podem ser mulheres e que as nascidas com vulva podem ser homens.
Nos últimos anos, inclusive, a Academia tem discutido internamente a nomeação de artistas que se declaram não binários, ou seja, que não se encaixam estritamente nas categorias masculinas e femininas (melhor ator, melhor atriz, melhor ator coadjuvante e melhor atriz coadjuvante).
Em 2024, Bill Kramer, CEO da Academia, disse ao site americano “Variety” que ele e outros membros estão avaliando a possibilidade de prêmios neutros para atuação. A possibilidade da mudança, porém, é contestável diante da disparidade de gênero existente em categorias que já são neutras, como direção (na qual apenas três mulheres foram vencedoras).
Emília Perez: entre o clichê e a ruptura da mesmice
“No mundo ideal, os prêmios não teriam divisão de gênero, mas a gente não vive no mundo ideal. Só que, realmente, onde vão colocar as pessoas não binárias?”, diz o cineasta trans Cássio Kelm, em entrevista ao g1. “A verdade é que, se realmente quiserem encontrar uma alternativa, vão encontrar, mas não querem.”
Diretor do longa-metragem “Mães do Derick”, Kelm afirma que as mudanças no Oscar costumam acontecer “a conta-gotas” e, por isso, suas expectativas são baixas quanto à representação trans na premiação.
“O Oscar tem muitos filmes com discursos problemáticos”, diz o cineasta. “Os personagens trans sempre estão simbolizando alguma coisa. Alguns, a liberdade. Outros, o exótico ou a perseguição, como em ‘Meninos Não Choram’. E tem aqueles com o estereótipo de ódio ao corpo, como ‘A Garota Dinamarquesa’.”
“Ou santificam, ou matam os personagens trans. Nos tratam como se não fôssemos humanos.”
Para Kelm, “Emília Pérez” foge dessa mesmice ao pôr nas telonas uma protagonista trans que, antes de tudo, é líder narcotraficante. Por outro lado, o filme pecaria ao mostrar a transsexualidade de maneira superficial. Como exemplo, ele cita o número musical em que a advogada Rita (Zoe Saldaña) canta sobre vaginoplastia — a letra dá a entender que esse é o único de jeito de se tornar uma mulher trans.
Emília Perez
Diretora trans e crítica de cinema queer, Drew Burnett Gregory descreve “Emília Perez” como um retrocesso “na conversa sobre a representação trans” nas telonas.
“O que parecia único e até emocionante sobre ‘Emilia Pérez’ é que era um grande musical cheio de ação. Mas ele ainda se enquadra nos mesmos padrões de outros filmes que, pelo menos na superfície, são menos interessantes”, ela diz ao g1 por e-mail.
Assim como Kelm, Gregory, acredita que o maior problema da trajetória trans no Oscar é a desumanização dos personagens.
“Os personagens trans têm sido suporte para personagens cis, almas torturadas que morrerem, ou as duas coisas juntas.”
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