Cenas de um governo em crise


Lula titubeia para decidir, evita reuniões políticas em casa e mantém indefinição interna sobre 2026. Datafolha: 41% reprovam o governo Lula. Aprovação é de 24%
A estreia de Sidônio Palmeira numa reunião do governo Lula (PT), com plano de comunicação debaixo do braço e discurso pronto para rádio e TV, aconteceu numa cena que marca a primeira grande derrota do governo junto à opinião pública e ao mercado: o anúncio do plano de corte de gastos combinado à isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil, no fim de novembro.
Lula havia chamado uma reunião grande para debater o tema. Estavam na sala os ministros Rui Costa (Casa Civil), Fernando Haddad (Fazenda), Simone Tebet (Planejamento), Paulo Pimenta (Comunicação Social), Alexandre Padilha (Articulação Política), Esther Dweck (Gestão) e o hoje presidente do Banco Central, Gabriel Galipolo.
O presidente estava decidido a fazer um anúncio conjunto, das duas medidas ao mesmo tempo. Sidônio, que ainda não havia assumido cargo no governo, entrou na sala com uma campanha pronta debaixo do braço para bancar a dobradinha.
Haddad discordava. Disse a Lula que anunciar corte de gastos associado à isenção no IR, que na prática significa renúncia de receita, não iria funcionar nem para a base que Lula queria agradar nem para o mercado.
Ministro Sidônio Palmeira toma posse em cerimônia com Lula
YouTube/Reprodução
Diante do debate, o presidente inicia uma espécie de assembleia, na qual os presentes votariam: anúncios separados para o corte de gastos e para a isenção ou um pacote só. Haddad foi obviamente derrotado na votação. Ao lado do ministro da Fazenda argumentaram Tebet e Galipolo.
“Para mim, é essa reunião que marca o início da derrocada do governo”, diz um aliado de Lula. “Ali está o nascedouro de uma crise de confiança e da percepção de que Haddad não tinha força.”
Derrotado na “votação”, Haddad pede para despachar a sós com o presidente e sugere que apenas Galipolo esteja com eles na sala. Integrantes do governo que foram assuntar sobre relatam o seguinte: Haddad disse a Lula que o anúncio conjunto seria desastroso, que não surtiria efeito nem no mercado nem na base eleitoral, como queriam os colegas da Esplanada. Num gesto extremo, pediu que Galipolo dissesse claramente ao presidente o que aconteceria se as duas coisas fossem associadas.
“O dólar vai bater a barreira dos R$ 6”, previu o hoje presidente do Banco Central. Lula não se dobrou. “Isso é decisão política”, disse. O dólar de fato explodiu e o governo encerrou o ano com inflação de alimentos em alta, a moeda americana furando R$ 6,20 e uma evidente cisão interna.
Num requinte de crueldade da história, coube a Haddad fazer o anúncio do qual discordava. Em cadeia nacional, leu um texto desenhado por Sidônio. O publicitário ainda pregou o lançamento de uma campanha que sinalizasse “um Brasil mais justo para os brasileiros”. Ela chegou a ser anunciada por alguns colunistas na imprensa, mas não saiu do papel.
Ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Ueslei Marcelino/ Reuters
O ano vira e o governo se depara já em janeiro com uma crise: uma portaria da Receita que ampliava a fiscalização sobre o PIX, editada meses antes, havia captado a atenção da oposição. Às críticas à proposta se somaram uma série de fake news. Lula chama nova reunião.
De novo, dois personagens são vistos como centrais para a decisão de simplesmente revogar a portaria. Sidônio e Rui Costa. O publicitário até havia produzido um vídeo, dias antes do recuo oficial, no qual Lula faz um pix para seu time de futebol, na intenção de mostrar que não haveria taxação da operação, como diziam algumas das campanhas de desinformação. Não fez cócegas nas redes e ainda ampliou o ânimo dos detratores da medida.
Derrotado novamente, Haddad viu seu secretário da Receita ser obrigado a revogar a norma. No dia seguinte o governo sentiu o estrago: se havia dúvidas sobre o conteúdo da portaria, a revogação simplesmente cristalizou na população a sensação de que a gestão Lula iria mexer na transação mais queridinha do país —e para taxar os mais pobres.
“A sensação é de um governo que não quer debater, não quer fazer a disputa do terreno das ideias”, diz um ministro de Lula. “A Casa Civil virou o Triângulo das Bermudas. As coisas entram lá e desaparecem.”
As críticas a Rui Costa se tornaram quase que um esporte em Brasília. O ministro é comumente acusado de encastelar Lula, dificultar o debate, alimentar a escolha por saídas simplórias para problemas complexos. Mais: Rui chamou para si a responsabilidade de construir a campanha do PT para 2026. A ciumeira aumentou.
Rui Costa, ministro-chefe da Casa Civil, ao lado do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), participa da cerimônia de assinatura do contrato de concessão da BR-381/MG, no Palácio do Planalto, em Brasília (DF), em 22 de janeiro de 2025.
Fátima Meira/Enquadrar/Estadão Conteúdo
Outra personagem sempre mencionada é a primeira-dama, Janja. “É uma situação complexa, quase insolúvel. Ao mesmo tempo que ela é essa fonte de vitalidade para ele, ela tem esse perfil, que ele não dá sinais de querer controlar”, diz um antigo aliado do presidente.
Janja teria limitado reuniões políticas na residência do casal. Quando elas acontecem, a primeira-dama está presente e faz questão de opinar sobre os temas.
Lula passou a usar as viagens oficiais da mulher para receber políticos fora do Planalto, algo que fazia corriqueiramente.
A imagem que muitos fazem do petista hoje emula a de uma “boneca russa”. “É como se existisse um Lula dentro de outro Lula.”
A tese de um presidente “isolado” ou “encastelado” tornou-se recorrente. Seja pela blindagem política, de Costa, ou pessoal, de Janja, o fato é que o presidente está mais distante do varejo da articulação.
A primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja
WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO
Soma-se ao cenário, o terceiro fator determinante para a cisão no governo: Lula oscila sobre uma eventual candidatura à reeleição em 2026.
A primeira vez que o presidente teria verbalizado o dilema foi num momento tenso. Durante o retorno para o Brasil de uma agenda no exterior, a aeronave oficial teve um problema técnico e precisou sobrevoar por horas um aeroporto no México para gastar combustível e pousar com segurança.
“Ali foi a primeira vez que ele deu a entender que já estava cansado disso. Depois, com a queda, o acidente doméstico, ele mesmo naturalizou o assunto”, relata um auxiliar de Lula.
O tombo que levou o presidente a fazer uma cirurgia no cérebro o assustou de fato. Lula tem 79 anos e sua equipe médica admite que o acidente poderia ter tido consequências graves.
O petista passou a refletir publicamente, entre os auxiliares, sobre o uso do tempo, a dedicação à vida pública.
Se o governo já vivia de disputas internas, elas se ampliaram. O dilema de Lula de ser ou não ser candidato em 2026, abriu uma corrida interna pela sucessão.
Até hoje o presidente alterna sinais sobre a próxima eleição. “Essa é para mim a questão central. Já passou do tempo de definir o que vai ser, quem vai ser”, avalia um aliado.
Perdido em questões centrais, como ajuste fiscal, medidas de apelo popular e articulação política, o governo investe na tese de que está ganhando terreno nas redes sociais.
No episódio mais sintomático, petistas —o ministro Padilha, da articulação política à frente— decidiram aparecer na sessão de abertura deste ano legislativo com um boné “O Brasil é dos brasileiros”, para provocar a oposição.
“Abertura dos trabalhos do Congresso. O governo com uma agenda complexa. O que você faz? Um discurso de união nacional, um apelo pela aprovação de projetos que melhorem a vida do povo? Não. Você chama a oposição para a briga”, diz um petista contrariado com a estratégia.
Um deputado do PT relata ter sido abordado por um líder da oposição no plenário da Câmara.
“Escuta, vocês enlouqueceram? Governo governa, oposição é quem chama para a briga”, conta. O episódio engajou a base lulista nas redes sociais. “Nós não precisamos engajar a nossa base, precisamos falar para fora. Os números do algoritmo podem até dar discurso internamente, mas nada dizem para fora”, constata o parlamentar.
Dias depois, na última sexta (14), foi publicada pesquisa Datafolha que mostra Lula amargando a pior avaliação entre todos os seus mandatos. “O governo começou a debater a alta dos alimentos em novembro. De lá para cá teve o barulho do ajuste, a especulação sobre mudança no prazo de validade da comida, o barulho do PIX, a rinha do boné e um discurso. Medida, nada”, conclui um integrante do PT.
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