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Ribeirão Preto concentra um dos principais polos de pesquisa da temática no mundo, com estudos sobre o potencial antidepressivo da bebida, o impacto no estresse pós-traumático e até na autoimagem de mulheres. Laboratório recruta voluntários para novas investigações. USP investiga potencial terapêutico da ayahuasca há pelo menos 20 anos
Biraci Junior Yawanawá/Acervo Pessoal
A ayahuasca tem impactos positivos sobre a saúde mental? A resposta para a pergunta é buscada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) há pelo menos 20 anos.
O trabalho vem sendo desenvolvido no Laboratório de Estudos com Alucinógenos Psicodélicos e Saúde Mental (PhantasticalLab), vinculado ao Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
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Trata-se do principal polo mundial de investigação sobre o tema, segundo o ranking da Expertscape, plataforma que contabiliza artigos publicados na PubMed, principal motor de buscas do mundo na área da saúde.
Uma nova leva de estudos relacionando a ayahuasca com diversas situações psicológicas será realizada nos próximos meses e, para isso, os pesquisadores buscam voluntários na região de Ribeirão Preto (veja como ser voluntário abaixo).
A ayahuasca é uma bebida psicoativa utilizada tradicionalmente em rituais religiosos indígenas, considerada sagrada para diversos povos. De origem amazônica, concentra um composto de ervas distintas preparadas especificamente para a realização dos rituais. Em tradução livre e poética, ayahuasca pode ser chamada de “vinho das almas” ou “cipó dos espíritos”.
Os efeitos alucinógenos existem a partir da combinação de substâncias encontradas em plantas como o cipó Banisteriopsis caapi e folhas de Psychotria viridis, que juntas realizam interações químicas necessárias para a alteração cerebral momentânea.
Folhas para a preparação da ayahuasca
BBC/GETTY IMAGES
Estudos em andamento
O professor Rafael dos Santos, biólogo e doutor em farmacologia, é um dos maiores pesquisadores do mundo sobre a temática e um dos coordenadores do laboratório. Ele explica que atualmente são cerca de seis estudos em andamento relacionados à relação entre a bebida e a saúde mental.
Os estudos buscam avaliar o efeito da ayahuasca ou cetamina nos seguintes casos:
Transtorno Depressivo Maior (TDM);
Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT);
Ciclo menstrual e nos sintomas de tensão pré-menstrual (TPM);
Avaliação de personalidade e cognição;
Efeito analgésico de uma dose oral de ayahuasca ou de cetamina;
Na percepção corporal e da autoimagem em mulheres.
Os pesquisadores estão buscando voluntários para cada um desses estudos. Para saber como se voluntariar, é possível acessar a página da USP.
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Estudos sobre a depressão
O professor Rafael explica que, até o momento, o efeito mais evidente das pesquisas é relacionado à depressão.
“O que temos de mais consistente até agora é o possível efeito antidepressivo. Já publicamos anteriormente um estudo pequeno aqui em Ribeirão Preto, com 17 pessoas, em um estudo aberto — ou seja, sem grupo placebo, onde tanto os pacientes quanto os pesquisadores sabiam que estavam tomando a substância. Esse estudo mostrou um efeito antidepressivo com apenas uma dose, que durou até três semanas”, diz.
O mesmo estudo foi feito na cidade de Natal (RN), com uma amostra de 29 pessoas, sendo que metade recebeu placebo. Os pesquisadores constataram que uma semana após o estudo, o efeito da substância ativa foi superior ao placebo.
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Giordano Novak Rossi
Um novo estudo em finalização em Ribeirão Preto é o primeiro em que quatro doses serão administradas. Neste caso, a cetamina, um antidepressivo aprovado e utilizado, será o agente de comparação com a ayahuasca.
Outros estudos envolvem a pesquisa da bebida na redução do consumo de álcool e drogas e na ansiedade, mas as evidências e resultados ainda são menores do que no caso da depressão, segundo o coordenador.
Pesquisas ainda não estão concluídas
Embora os resultados sejam promissores, o professor Rafael ressalta que os estudos ainda estão em estágios iniciais.
“Quando falamos sobre aprovação de uma medicação, estamos lidando com um processo longo. Se fosse uma nova molécula desenvolvida por uma indústria farmacêutica, o tempo médio para aprovação seria de cerca de 15 anos, passando por testes em animais, ensaios clínicos em humanos saudáveis e depois estudos com pacientes até a aprovação final. A ayahuasca não passou por praticamente nenhum desses estágios avançados”, explica.
Outro obstáculo é que a ayahuasca não pode ser patenteada, pois é um conhecimento tradicional indígena. Isso reduz o interesse de empresas farmacêuticas em financiar estudos de larga escala sobre seus efeitos.
Atualmente, a ayahuasca é permitida no Brasil para fins religiosos, conforme resolução do Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad). No entanto, sua regulamentação para uso terapêutico ainda é incerta.
“Não vejo a ayahuasca sendo vendida em farmácias. Se um dia for regulamentada, talvez seja dentro do contexto de terapias alternativas”, diz Rafael.
Ainda existem diversos desafios que dificultam o avanço das pesquisas, como a variação química dos componentes das plantas e questões financeiras para viabilização dos estudos, uma vez que pela impossibilidade de patente, não há incentivo econômico para investimento nas pesquisas.
O professor Rafael ressalta que a bebida não pode ser considerada um medicamento, ou seja, não deve ser pensada ainda para tratar nenhum transtorno mental, uma vez que as evidências ainda não são conclusivas.
“Ela não é aprovada como medicamento em nenhum país, apenas é usada de forma tradicional em comunidades indígenas, o que envolve uma legislação diferente”, explica.
Rafael Guimarães dos Santos, da USP de Ribeirão Preto (SP), é um dos maiores pesquisadores de alucinógenos do mundo
Divulgação
O que acontece durante o uso da ahayuasca?
O professor explica que a experiência com a bebida pode ser bastante ampla e distinta de pessoa para pessoa, mas existem vivências comuns. Alguns relatam insights profundos, mudanças na forma de ver a vida, impactos positivos na saúde mental, principalmente em contextos terapêuticos ou religiosos.
O protético dentário Tiago Zumerle Palentim, que faz uso da bebida regularmente em contexto religioso, conta que a primeira vez que usou sentiu como se ‘tivesse morrido e retornado’. Ele conta que a experiência foi muito forte e transformadora.
“Era como se eu não estivesse mais neste plano terreno, como se estivesse olhando para a minha vida de fora, mas de uma forma muito mais profunda. No meu caso, senti uma conexão muito forte com a natureza. Foi algo extremamente prazeroso, despertando uma apreciação por coisas simples, como o ato de respirar. Algo tão cotidiano, que muitas vezes passa despercebido no nosso dia a dia. A sensação foi de pura liberdade, com a mente trazendo exatamente aquilo que eu precisava naquele momento: um contato profundo com o meu lado espiritual”, relata.
Ele sente que foi chamado para realizar o uso constante da bebida, pois os momentos são de reconexão consigo mesmo. Para ele, é um momento de introspecção que o ajuda a refletir sobre a vida e as dificuldades que enfrenta. Por isso, sente benefícios para sua saúde mental.
“Um exemplo prático disso é quando estou sobrecarregado com problemas que parecem gigantescos e sem solução. Esses momentos costumam nos frustrar e nos tirar do eixo. Quando utilizo da medicina [ayahuasca], consigo mudar minha perspectiva. Ainda que os problemas não desapareçam, passo a enxergá-los de outra forma, com mais calma e clareza. É como se eu pudesse silenciar minha mente, acalmá-la o suficiente para realmente pensar nas soluções ou, pelo menos, para lidar com as situações de maneira mais tranquila”.
Ele alerta sobre a importância de buscar lugares que tratam o tema com respeito e vinculados ao contexto espiritual, uma vez que é considerada uma espécie de medicina sagrada.
Faculdade de medicina da USP em Ribeirão Preto
Valdinei Malaguti/EPTV
Acompanhamento é essencial
O relato de Tiago é um exemplo dos efeitos positivos que a bebida pode ter na saúde mental das pessoas, e a experiência do protético vai na mesma linha dos estudos do PhantasticaLab. Segundo o professor Rafael, o ambiente em que o uso é feito determina a experiência do indivíduo, por isso o acompanhamento religioso ou terapêutico é necessário e ajuda a coibir efeitos adversos.
“No fim das contas, o que a gente vê nos estudos e na prática é que a ayahuasca, quando utilizada de forma adequada, tem um perfil de segurança relativamente alto, principalmente quando comparada a outras substâncias psicoativas. Mas como qualquer substância com efeito sobre a mente e o corpo, o uso deve ser sempre bem pensado, informado e, quando possível, acompanhado por pessoas experientes”, finaliza.
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