Gregório Duvivier roça a língua de Caetano Veloso ao interpretar canção de 1997 em monólogo encenado no Rio


Música ‘Livros’ tem letra que dialoga com os versos em decassílabos de ‘Chão de estrelas’, composição lançada por Silvio Caldas em 1937. Gregório Duvivier protagoniza o monólogo ‘O céu da língua’, em cartaz no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro (RJ), até o fim de fevereiro
Raquel Pellicano / Divulgação
♫ ANÁLISE
♪ Ator e escritor carioca, Gregório Duvivier roça e fricciona a língua de Luís de Camões (1524 – 1580) em monólogo idealizado e apresentado pelo artista no ano passado, em palcos lusitanos, para celebrar os 500 anos do nascimento do poeta português, completados em 2024.
Intitulado O céu da língua, o monólogo estreou no Brasil ontem, 6 de fevereiro, em temporada que se estenderá até o fim do mês no Teatro Carlos Gomes, na cidade do Rio de Janeiro (RJ).
Em cena, sob direção de Luciana Paes e emoldurado por imagens de palavras projetadas por Theodora Duvivier, Gregório atua com o toque do contrabaixista Pedro Aune, instrumentista responsável pela ambientação musical desde monólogo que cruza fronteiras cênicas, se situando entre um pseudo-recital de poesia e um stand-up de humor ácido e ágil.
Além de expor a elasticidade e a vivacidade da língua portuguesa, com a intenção de pegar o público pela palavra, Duvivier roça a língua de Caetano Veloso na parte final do monólogo. É quando o ator interpreta Livros, canção composta por Caetano e gravada pelo autor no álbum Livro (1997).
Repleta de aliterações, a letra da música de Caetano remete intencionalmente à canção Chão de estrelas (1939), composição que exemplifica o Brasil seresteiro e sentimental das décadas de 1930 e 1940.
Com versos líricos que derramam poesia, romantizando a vida de quem mora nos barracos, Chão de estrelas é o maior sucesso da parceria do cantor e compositor carioca Silvio Caldas (23 de maio de 1908 – 3 de fevereiro de 1988) com o compositor e jornalista conterrâneo Orestes Barbosa (7 de maio de 1893 – 15 de agosto de 1966).
Com letra escrita em versos decassílabos, a canção Chão de estrelas nasceu em 1935 quando Caldas musicou poema de Orestes, intitulado Foste a sonoridade que acabou, após insistir muito com o autor do poema.
E o fato é que os imagéticos versos líricos como “A porta do barraco era sem trinco/ Mas a lua furando nosso zinco / Salpicava de estrelas nosso chão / Tu pisavas nos astros, distraída / Sem saber que a ventura desta vida / É a cabrocha, o luar e o violão” cativou os poetas do Brasil como Guilherme de Almeida (1890 – 1969), responsável pela troca do título da canção para Chão de estrelas. E um dos maiores, Manuel Bandeira (1886 – 1968), chegou a sentenciar em 1956 que o verso mais bonito da música brasileira era “Tu pisavas nos astros, distraída”.
Em 1997, decorridos 60 anos da gravação original de Chão de estrelas por Silvio Caldas em 1937, Caetano Veloso subverteu os versos na canção Livros, dialogando com a letra da música com teor poético menos lírico e menos romântico.
Com versos como “Tropeçava nos astros desastrada / Sem saber que a ventura e a desventura / Desta estrada que leva o nada ao nada / São livros e o luar contra a cultura”, a canção Livros evoca melódica e poeticamente Chão de estrelas sem resvalar para a paródia ou para simples imitação.
Na interpretação de Gregório Duvivier, no arremate do monólogo O céu da língua, a canção Livros salpica em cena signos e significados que corroboram o que foi exposto antes pelo ator com a verve e o humor característicos de Duvivier.
Em O céu da língua, o idioma português, cheio de vida, é a pátria do ator, que comove o público através da música de Caetano após fazer confusões de prosódias e profusões de paródias na cena inspirada pela escrita poética de Luís de Camões, mas também iluminada pela língua perspicaz de Caetano Veloso, poeta da canção popular brasileira.
♪ Eis a letra de Livros, canção de Caetano Veloso interpretada por Gregório Duvivier no monólogo O céu da língua :
Livros (Caetano Veloso, 1997)
“Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
E, sem dúvida, sobretudo o verso
É o que pode lançar mundos no mundo
Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura
Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
Talvez isso nos livre de lançarmo-nos
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas”
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