Por que El Salvador decidiu abandonar bitcoin como moeda oficial após 4 anos

Reforma ocorre num contexto no meio de uma negociação com o FMI; entidade definiu ‘mitigar os riscos do bitcoin’ como uma das condições para empréstimo de 1,4 mil milhões de dólares. El Salvador retirou do bitcoin o status de moeda legal menos de quatro anos depois de ter sido o primeiro país a adotá-lo, impulsionado pelo presidente Nayib Bukele.
Essa mudança faz parte da reforma da Lei Bitcoin, aprovada nesta quarta-feira (29/1) pela Assembleia Legislativa, controlada pelos governistas.
Com a modificação de seis artigos e a revogação de três da legislação pioneira sancionada em setembro de 2021, o criptoativo deixa de ser uma moeda oficial.
Seu uso passa a se restringir a transações entre cidadãos e empresas privadas, e sua aceitação deixa de ser obrigatória, tornando-se opcional.
O projeto de reforma foi apresentado pela ministra do Turismo, Morena Valdez, a pedido do presidente Bukele. Apesar de ser bastante ativo nas redes sociais, ele não comentou publicamente o tema.
A decisão ocorre em um contexto econômico desafiador para o país e em meio a uma negociação com o Fundo Monetário Internacional (FMI) por um empréstimo de US$ 1,4 bilhão. Entre as condições impostas pelo FMI estava a necessidade de “mitigar os riscos do bitcoin”.
Em dezembro, o organismo internacional e as autoridades salvadorenhas chegaram a um acordo técnico, mas El Salvador precisava cumprir os requisitos estabelecidos para que o conselho executivo do FMI desse a aprovação final em fevereiro.
Lei confusa e obscura
A reforma gerou confusão e críticas devido à nova redação de alguns artigos.
O trecho que mais causou perplexidade foi a alteração no primeiro artigo da lei, do qual foi removida a palavra “moeda”, mas mantida a expressão “de curso legal”.
“O que significa dizer que o bitcoin é regulado como ‘de curso legal’?”, questionou o advogado constitucionalista Enrique Anaya.
“A chave é que o conceito de moeda desaparece”, explicou à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, a economista Julia Evelin Martínez.
“Por exemplo: o euro tem curso legal em El Salvador porque as pessoas podem usá-lo opcionalmente se ambas as partes concordarem, mas não é moeda de curso legal porque ninguém é obrigado a aceitar pagamentos em euros”, detalha Martínez, que foi professora e pesquisadora no Departamento de Economia da Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (UCA) de 1998 até o ano passado.
O economista Carlos Acevedo, ex-presidente do Banco Central de Reserva de El Salvador, concorda com essa interpretação.
“Esse é o espírito da reforma, embora a redação seja muito confusa e obscura”, avalia.
Antes da reforma, a lei obrigava comércios, empresas e instituições públicas a aceitarem pagamentos em bitcoin, a menos que não tivessem a tecnologia para processar as transações. Agora, essa aceitação passa a ser voluntária.
Além disso, não será mais possível pagar impostos com bitcoin, e o Estado não poderá mais quitar dívidas na criptomoeda.
“As obrigações monetárias do Estado, domésticas e externas, deverão ser pagas nas moedas em que foram contraídas”, determina o novo artigo 12 da lei.
Nem Bukele nem os parlamentares de seu partido, o Novas Ideias, comentaram publicamente sobre a mudança.
No entanto, a embaixadora de El Salvador nos Estados Unidos, Milena Mayorga, falou sobre o tema durante o evento Plan B, uma conferência especializada em bitcoin.
Mayorga afirmou que, apesar da “redação confusa”, El Salvador continua sendo o “país do bitcoin”, pois mantém reservas na criptomoeda e pretende ampliá-las.
“É preciso se adaptar às circunstâncias do momento, e essa foi a decisão tomada na Assembleia. Mas isso não significa que o país deixará de ter reservas em bitcoin”, disse.
“Agora, ainda mais, já que os Estados Unidos estão se tornando mais amigáveis não apenas com o bitcoin, mas com qualquer outra criptomoeda”, acrescentou.
El Salvador adotou o bitcoin como moeda de curso legal em 2021.
Dois anos depois, a BBC Mundo verificou, em reportagens no local, que o uso da criptomoeda era esporádico, apesar de analistas e autoridades concordarem que ela serviu principalmente como um atrativo turístico.
“O bitcoin não teve a adoção que esperávamos”, admitiu o próprio Bukele em entrevista à revista Time publicada recentemente.
Economia em crescimento lento
Com a reforma da Lei Bitcoin, o caminho para a concessão do empréstimo do FMI se torna mais viável, o que pode aliviar o cenário de uma economia pouco dinâmica e altamente endividada como a de El Salvador.
O impacto pode ser ainda maior se isso abrir portas — como o FMI indicou em dezembro ao anunciar o acordo técnico — para um apoio adicional do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e de outras instituições regionais, em um pacote de financiamento que ultrapasse os US$ 3,5 bilhões.
Mesmo assim, o desafio econômico segue sendo significativo.
Pelo quinto ano consecutivo, El Salvador foi a economia que menos cresceu na região.
Além disso, o país importa mais do que exporta, o que resultou em um déficit comercial superior a US$ 8 bilhões em 2023.
Parte desse desequilíbrio é compensada pelas remessas enviadas por salvadorenhos que vivem no exterior. Apenas nos primeiros sete meses de 2024, essas transferências somaram US$ 4,756 bilhões, segundo dados do Banco Central de Reserva (BCR).
Enquanto isso, 52% da população (cerca de 3,3 milhões de pessoas) vive em situação de estresse alimentar, ou seja, enfrenta dificuldades para garantir a alimentação diária.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em seu mais recente relatório sobre os pontos críticos da fome no mundo, incluiu El Salvador entre os países que precisam ser monitorados de perto.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.

Os comentários estão desativados.