Eunides Maria Alves, de 54 anos, produz cachaças saborizadas e licores até afrodisíacos na vila de Campos Novos, no município de Iracema, com frutas cultivadas no quintal de casa e de produtores locais. Ideia dela é fortalecer economia e trabalho de outras mulheres na região. Agricultora conquista liberdade financeira com cachaçaria artesanal aberta há 20 anos
🥃 Pinga, branquinha, cana ou caninha, aguardente, cachaça. Há duas décadas, no interior de Roraima, a bebida destilada exclusiva do Brasil é muito mais do que água para os cachaceiros. A “marvada” foi o que garantiu independência financeira a empreendedora Eunides Maria Alves, de 54 anos, por meio da produção artesanal que inclui sabores especiais e até licores afrodisíacos, que guardam segredos de produção.
Se cachaceiro é quem fabrica cachaça, então Eunides é cachaceira profissional, que inova para atender os consumidores que já estão espalhados pelo país e em 2025 planeja patentear os produtos.
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Eunides Maria, dona da ‘Biroska Bakana’ em Campos Novos, no interior de Roraima.
Yara Ramalho/g1 RR
Nas ruas da vila de Campos Novos, no município de Iracema, ao Sul de Roraima, a fama da empreendedora já é tão forte quanto o aroma adocicado de frutas tropicais misturado com álcool produzido na “Biróska Bakana”.
“Hoje é uma vitória ter essa cachaçaria, que é de uma mulher negra que tem 54 anos. Estourou, assim, de uma forma bem legal. É muito orgulho, muito trabalho também”, disse ela.
O primeiro contato com a produção das bebidas veio através de um curso gratuito do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), que ensinava moradores da região a reaproveitar a banana. Desse curso saiu a primeira bebida feita por Eunides: o licor de banana, que mantém guardado há 20 anos.
“Um trator trazia [as bananas] e passava para um caminhão e nesse processo sobrava um monte de banana ali solta do cacho, estragando. E aí a gente fez esse curso do Senac para aprender a usar, reaproveitar essas bananas. A gente fez esse curso e assim eu aprendi a fazer o [licor] de banana”, contou.
Birosca fica localizada na vila de Campos Novos, no município de Iracema, em Roraima.
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Hoje, ela também vende licores — o carro-chefe do empreendimento — de abacaxi, tamarindo, jabuticaba, açaí, coco, jenipapo, murici, cupuaçu, tangerina, caju, araçá-boi, manga, buriti, acerola e o de gengibre, conhecido como o viagra natural de Campos Novos e o mais popular entre os homens e as mulheres que são clientes da birosca.
🔎 No cardápio ainda há 14 sabores da “cachaça temperada”, uma bebida destilada com o aroma e o sabor de uma determinada fruta ou especiaria natural. Diferente da cachaça, o licor é uma bebida composta por água, álcool e açúcar, além de um ingrediente de origem vegetal, como as frutas.
Eunides comanda toda a produção e venda da birosca, que virou um ponto turístico de Iracema. O local já é visitado por pessoas que vão a região para conhecer e se aventurar nas cachoeiras Esmeralda, Davi e Evandro, localizadas na região entre Campos Novos e a vila Apiaú, no município de Mucajaí.
Licor de gengibre, conhecido como ‘viagra de Campos Novos’ vendido por Eunides.
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Produção artesanal
Eunides não produz a cachaça do zero, ou seja, não lida com o corte da cana-de-açúcar, preparação da garapa (caldo extraído da cana) e a fermentação. O produto já é comprado pronto nos supermercados da região e é misturado as frutas e especiarias — a maioria cultivada no quintal da casa dela.
O álcool é neutro, para não interferir no sabor final do produto. Frutas como jabuticaba, abacaxi, banana, manga, acerola e araçá-boi são colhidas das árvores cultivadas pela agricultora. As outras são compradas de vizinhos, agricultores familiares. A ideia dela é incentivar as produções locais.
“O meu objetivo é trazer a maioria desses produtores, principalmente as produtoras rurais, para esse patamar, porque eu não acho justo eu estar aparecendo aqui hoje e ter uma irmã lá que não aparece”, disse.
O gengibre, assim como outras frutas e especiarias, são cultivadas pela empreendedora,
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A produção das bebidas é cuidadosa: as frutas sempre são higienizadas. Após isso, os frutos são amassados, cortados e dependendo do caso, descascados.
Depois, em um recipiente, o álcool é misturado aos frutos. A infusão dura ao menos 30 dias, tempo considerado por Eunides como o mínimo para que a bebida atinja o seu sabor ideal. No entanto, quanto mais tempo, melhor.
Preparada, a mistura é filtrada para retirar os resíduos mais grossos das frutas. No caso da cachaça temperada, esse é o último passo do preparo. O produto é armazenado em galões, depois engarrafado, rotulado e vai para as prateleiras.
Após a infusão do álcool com as frutas, a cachaça é armazenada em galões.
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Já no caso do licor, o preparo é um pouco mais complexo. Com a infusão finalizada, a empreendedora inicia a produção do xarope, feito a base de água e açúcar, que diferencia a cachaça temperada do licor.
🤫 A reportagem foi até a birosca e acompanhou só uma parte da produção dele. Isso porque Eunides guarda um segredo de preparo e não revela para ninguém. Mas o fato é: o xarope leva muito tempo para ficar pronto.
Em uma panela, a água e o açúcar são misturados e cozinhados por cerca de 12h, e por isso o trabalho começa cedo. Pronto, com uma consistência de calda, ele é misturada à cachaça, que já passou pela infusão de frutas.
Xarope utilizado no preparo do licor é feito a base de açúcar e água.
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Após isso, o licor é filtrado, colocado em garrafões onde fica em descanso e, por fim, engarrafado. Com o rótulo que contém informações sobre a data de fabricação, local onde foi fabricado e contatos, ele é colocado nas prateleiras da birosca ou levados para os clientes que já encomendaram o produto.
Eunides diz que licor é como vinho: quanto mais velho, melhor é. Segundo ela, um longo tempo de envelhecimento deixa o sabor da bebida mais apurado. Nas prateleiras, o mais velho é o primeiro feito por ela, o licor de banana, que tem 20 anos. Esse ela não vende, mas oferece para algumas pessoas.
Licor mais antigo feito por Eunides completa 20 anos em 2025.
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Busca por estabilidade
Nascida em Cassilândia, cidade no interior do Mato Grosso do Sul, Eunides deixou a terra natal há 22 anos para tentar uma vida com mais estabilidade no interior de Roraima. Ao lado do marido à época e com um filho pequeno, ela viu a oportunidade ter o próprio pedacinho de terra na nova cidade, em 2002.
Ela seguiu direto para a vila de Campos Novos. Após conquistar a casa própria, a empreendedora abriu um pequeno comércio no quintal da residência, onde vendia itens de alimentação e bebidas. O trabalho com a cachaça e os licores só começou três anos depois da chegada dela ao estado, em 2005.
Birosca fica localizada em Iracema e já virou ponto turístico da região.
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As primeiras bebidas eram vendidas no próprio comércio e, aos poucos, foram conquistando o paladar das pessoas. O estabelecimento foi fechado, Eunides se divorciou e decidiu investir na produção dos licores e da cachaça temperada.
Com a base do conhecimento de produção do licor, Eunides começou a testar a bebida com novos sabores como o de jenipapo, fruta usada na produção de doces e até para dar cor as coisas, até chegar a 16 variedades do produto.
Vendas
Licores já foram vendidos para vários estados do Brasil.
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Os licores e cachaças tem preços fixos: a garrafa grande, com 1 litro, é vendida a R$ 45 e a pequena, que tem 275 ml, custa R$ 15. Os produtos, inclusive, já colecionam apreciadores em várias partes do Brasil e até fora do país. Eundes já tem clientes na cidade de Boston, em Massachusetts, nos Estados Unidos.
As bebidas já foram vendidas para o Rio Grande do Sul, São Paulo, Pará, Amazonas e o estado natal de Eunides, o Mato Grosso do Sul. Ela afirma que os produtos ficaram conhecidas por meio de divulgações feitas em uma página numa rede social, além do boca a boca e a parceria dos amigos.
“Eu estou me preparando para mandar para todos os lugares do Brasil em 2025 e quem sabe para fora do Brasil porque eu gosto de sonhar grande, eu não gosto de sonhar pequeno não. Eu só sou pequenininha, mas gosto de sonhar grande”, disse.
A produção ainda é pequena e, por isso, a empreendedora não contabilizava a quantidade de bebida vendida e produzida por mês. Mas com a fama do trabalho, que ganhou força na Exposição Feira Agropecuária de Roraima (Expoferr) em novembro do ano passado, ela pretende calcular.
Empreendedora vende licores com sabores inusitados em Roraima
Ajudar outras mulheres
Aos longo de 20 anos de trabalho, Eunides conquistou a liberdade financeira, mas também enfrentou o preconceito ao conduzir o próprio negócio. Mulher negra, ela já foi alvo de situações de descriminação, como o racismo. Em uma das situações, ela que é a dona do estabelecimento, não foi vista como tal por clientes, e chegou a ser inferiorizada por eles.
“Ao longo da vida a gente sofre muito bullying com a cor da pele, muita discriminação. Chegam pessoas aqui que olham para mim e dizem: ‘pode chamar o dono?’. Outra vez eu fui trocar uma grade de cerveja e disseram: ‘seu chefe vai brigar contigo’. Eles não perguntam, eles olham para você e se sua pele é negra, você é o faxineiro. Não estamos descriminando os faxineiros, mas isso não está certo. Eles olham e já imaginam quem eu sou, mas não a dona”.
“Mas eu fico feliz de olhar para eles dizer assim: ‘eu sou a dona’. Essa é a minha maior motivação, olhar para o cliente e dizer que eu sou a negra, velha, mas sou a dona. E eu não respondo essas pessoas de uma forma má, porque geralmente elas viram meus clientes depois”, ressaltou Eunides Maria.
Fátima Afonso, membro da Associação de Mulheres Empreendedoras e Emponderadas de Campos Novos.
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Mesmo com esses obstáculos, ela seguiu com o sonho de empreender e os casos de descriminação se transformaram em força para ajudar outras mulheres da região que também buscam a liberdade financeira.
👭 Eunides coordena a Associação de Mulheres Empreendedoras e Emponderadas de Campos Novos, onde ensina de forma gratuita como fazer uma diversidade de produtos, como doces, crochê, pinturas, costuras e bordados, conhecimentos e técnicas que ela aprendeu ao longo da vida.
Uma das 23 integrantes da associação é a artesã Fátima Afonso Sagica, de 65 anos. Morando em Campos Novos há cerca de dois anos, ela encontrou no grupo e na amiga, a mudança de uma realidade marcada pela dificuldade.
Na infância, Fátima não teve acesso a educação e por isso não sabia ler e escrever. Ela e Eunides se conheceram durante um culto religioso, em uma igreja localizada na frente da birosca. Foi na igreja, acompanhando os versículos bíblicos e com o incentivo da empreendedora, que ela aprendeu a ler.
Artesã Fátima Afonso Sagica, de 65 anos.
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“Recrutada” para a associação, Dona Fátima aprendeu a fazer bordados, doces e bonecas de crochê com Eunides. Hoje é da renda dessas produções artesanais que ela sobrevive e realiza alguns sonhos, como melhorar as condições da casa onde vive e comprar um celular.
“As pessoas me olhavam como uma ninguém, mas ela não, ela me olhou como se eu tivesse algo que saísse de dentro de mim e fosse capaz de conseguir fazer as coisas, trabalhar para ganhar o meu dinheiro e não ficar mendigando as coisas. Ela olhou o que tinha dentro de mim, força, coragem”, contou.
“Hoje eu sou uma mulher empoderada. Eu vivo desse trabalho, do crochê que eu faço. Eu criei uma força em mim mesma. Eu sei que eu posso, eu vou fazer e vou fazer fazendo. O meu trabalho é tudo, ele preenche a minha vida”, afirmou Fátima.
Para Eunides, são essas histórias que a motivam a continuar empreendendo e ajudando mais mulheres, que buscam o empreendedorismo por necessidade, mas que também podem encontrar uma mudança de realidade e a liberdade.
Produção de cachaças e licores artesanais transformam renda e vida de agricultora em RR
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