O Brasil é um país difícil de ser compreendido e, mais difícil ainda, de ser explicado. No momento em que a economia vive o melhor momento dos últimos 12 anos — com a queda acentuada do índice de desemprego e a elevação consistente do PIB —, o câmbio dispara e o dólar ultrapassa a barreira dos seis reais. E, nesse momento, o “mercado” age com tanto frenesi que dá a impressão de que o país marcha para o precipício.
Nem tudo está tão ruim quanto se imaginou na semana passada — mas o governo precisa ficar atento para as atitudes que toma. O solavanco que fez a moeda norte-americana subir foi provocado por um movimento errático do próprio governo. Na semana passada, Brasília prometeu um pacote de corte de gastos públicos — condição necessária para melhorar as condições fiscais e manter a inflação sob controle. Só que, quando anunciou as medidas que pretendia adotar para reduzir as despesas correntes, deixou claro que não tem a intenção de fazer corte algum.
A repercussão foi ruim, gerou danos de imagem e prejudicou a percepção dos resultados positivos que vêm sendo obtidos pela economia. E esses resultados são para lá de expressivos. O Brasil alcançará no ano de 2024 o maior volume de investimentos em infraestrutura do Século 21! Além de alcançar um volume recorde, o atual ciclo de investimentos guarda uma diferença enorme em relação aos do passado: a grande maioria dos recursos que fazem a engrenagem da economia se mover não vem dos cofres públicos, mas do setor privado. Ou seja: é dinheiro que move a economia sem o risco de desarranjar as finanças oficiais.
Dos quase R$ 260 bilhões investidos em rodovias, portos, ferrovias, obras de saneamento e outros serviços de infraestrutura espalhados por todo país neste ano, em números arredondados, R$ 197 bilhões são recursos privados e apenas R$ 63, dinheiro público. Em 2019 — antes que a pandemia da Covid-19 paralisasse a economia — o total de investimentos em infraestrutura no país foi de apenas R$ 164 bilhões.
Em qualquer lugar do mundo, uma situação como estaria sendo comemorada e servindo de base para a projeção de dias melhores. No Brasil, no entanto, sempre fica no ar a sensação de que as providências que realmente deveriam ser tomadas para estimular situações como essa — ou seja, o crescimento da economia com apoio do governo, mas com recursos privados — sempre são deixadas para depois.
A impressão que se tem é a de que, por falta da definição de uma agenda de prioridades clara e aceita pela sociedade, o país nunca parece olhar para aquilo que está dando certo. E, embora não seja o único culpado por essa situação, o governo tem sua parcela de responsabilidade ao gastar energia com discussões secundárias e deixar em segundo plano os pontos que realmente interessam.
Mercado Trilionário
Isso mesmo: o “mercado”, que sempre aproveita para lucrar diante da inércia do governo em relação aos próprios gastos, não teria força para produzir tantos sobressaltos se Brasília, ao invés de tentar agradar o eleitorado com a promessa de isenção do imposto de renda para salários de até R$ 5 mil, estivesse preocupada com as questões estruturantes. Para o assalariado, de nada adianta receber um contracheque livre de impostos se o poder de compra do salário logo for corroído por uma inflação crescente.
Num cenário como esse, o governo faria mais pelos assalariados se, ao invés de se preocupar em distribuir benesses que podem desaparecer com a mesma rapidez com que vieram, se preocupasse com questões estruturantes e capazes de dar ao setor produtivo condições para que ele trabalhe, gere renda, ofereça empregos e crie oportunidades para que a sociedade prospere.
Um bom exemplo do que se pretende dizer com isso está no agronegócio. Queiram não queiram seus críticos, o setor foi responsável pelos resultados mais positivos obtidos pela economia brasileira nos últimos anos. Mas, a impressão que se tem é a de que, nos momentos em que necessita de apoio do governo, o campo é tratado como se fosse capaz de se livrar de suas dificuldades por si mesmo.
Isso tem ficado claro na disputa que esquentou nos últimos dias em torno da recusa da França em abrir seu mercado para os alimentos, especialmente a carne, produzidos no Brasil. Por trás das discussões que ganharam espaço na imprensa, e que vão muito além das ofensas dirigidas por parlamentares franceses à qualidade do produto brasileiro, o que está em questão é o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia — que pode tornar o agronegócio brasileiro mais forte do que ele já é.
Se um dia vier a ser assinado, o pacto abrirá as portas do trilionário mercado do velho continente para a carne e os grãos produzidos na América do Sul, especialmente, na Argentina e no Brasil. Qualquer país produtor que estivesse na posição do Brasil estaria fazendo tudo o que fizesse a seu alcance para solucionar as pendências e começar a colher os benefícios que podem ser gerados por esse acordo. Só que, pela forma com lida com a questão, o Brasil parece que não dá ao documento a importância que ele tem.
Para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não há com que se preocupar. Pelo que ele declarou durante um evento promovido pela Confederação Nacional da Indústria na semana passada, em Brasília, a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Lyern já “sinalizou” que assinará o documento e, diante disso, não há nada que o parlamento francês possa fazer para impedir o negócio. Será?
Latas de lixo
Na semana passada, a Assembleia Nacional francesa fez uma sessão para deliberar sobre o assunto e decidiu, por 484 votos a 70, que a França não aceitará o acordo com o Mercosul. Um dos deputados locais, um tal de Vincent Trébuchet, de um partido de extrema-direita, disse, por exemplo, que “nossos agricultores não querem morrer e nossos pratos não são latas de lixo”. Teve quem falasse que a carne brasileira é produzida à custa da devastação da Amazônia e de condições sanitárias inaceitáveis na Europa.
Essas foram apenas algumas entre dezenas de demonstrações de falta de informação, arrogância e má fé dadas durante uma sessão que teve apenas valor simbólico. O parlamento francês não tem, de fato, o poder legal de barrar o acordo. Mas ao criticá-lo com tanta veemência, joga a reputação do produto pelo ralo e cria uma situação que praticamente fecha as portas da Europa para os alimentos produzidos no Brasil.
O acordo consumiu mais de vinte anos do trabalho árduo de funcionários de todos os países da União Europeia e do Mercosul. O lado europeu fez todas as exigências possíveis e imagináveis e o lado sul-americano se submeteu a todas elas. Tudo foi discutido tim-tim por tim-tim e, só depois que todos concordaram com o que estava escrito, a França expôs seu lado mais xenófobo e protecionista e faz de tudo para melar a brincadeira.
Faceta intrigante
Os franceses sequer assumem a verdadeira razão de sua aversão ao tratado que amplia o comércio entre os blocos. O que acontece na verdade é o seguinte: o país morre de medo de expor os produtos de sua lavoura arcaica e de baixíssima produtividade à concorrência do agronegócio mais ágil, moderno e competitivo do mundo — que é, justamente, o do Brasil e, um pouco mais atrás, o da Argentina. E, por essa razão, cismaram agora de inventar motivos sanitários para fizer que o acordo não é bom para eles.
A controvérsia em torno da importação de carne brasileira na França expõe uma faceta intrigante da política europeia: o uso seletivo de discursos ambientais para disfarçar interesses protecionistas. Embora as críticas contra a carne brasileira frequentemente se apoiem em argumentos como desmatamento e padrões sanitários, o debate revela muito mais sobre as contradições internas da França do que sobre qualquer falha sistêmica do Brasil.
A França, como uma das principais potências econômicas da Europa, não é nenhuma novata em práticas protecionistas. Durante décadas, seus agricultores receberam subsídios massivos da União Europeia para proteger o setor agrícola local contra a concorrência externa. No caso da carne brasileira, os argumentos de proteção ambiental vêm ganhando força, mas será que são genuínos?
É indiscutível que o desmatamento na Amazônia é um problema grave. No entanto, associar toda a cadeia de produção de carne brasileira ao desmatamento é uma simplificação absurda e, muitas vezes, deliberada. O Brasil, embora ainda enfrente desafios ambientais significativos, também possui uma das legislações ambientais mais rigorosas do mundo. Além disso, o governo e o setor privado vêm investindo em tecnologias para rastrear a origem da carne e assegurar práticas mais sustentáveis.
Curiosamente, o discurso francês ignora que o impacto ambiental da pecuária local não é tão pequeno quanto alegam. A produção de carne na França consome vastos recursos naturais e contribui significativamente para as emissões de gases de efeito estufa. Além disso, se o problema é a Amazônia, a França também tem o que responder. Última potência europeia no controle de um vasto território no continente americano, a Guiana, a França também enfrenta problemas com o garimpo ilegal, o desmatamento criminoso e as queimadas. Mas quando essa realidade é mencionada, o discurso muda: o que é justificável na França torna-se inaceitável quando se trata do Brasil.
Pedido de desculpas
Seja como for, a guerra prossegue e não terá um fim se o governo brasileiro não adotar uma postura mais firme em defesa dos interesses do Brasil. Na semana passada, apenas para citar um exemplo do que anda acontecendo, depois de ter dito que a empresa que dirige cancelaria as importações de carne brasileira, o presidente da rede de supermercados Carrefour na França, Alexandre Bompard, voltou atrás. Isso porque os frigoríficos brasileiros reagiram ao anúncio de suspensão das exportações mínimas que fazem para a França, e suspenderam as entregas de carne às mais de 500 lojas da rede no Brasil — e que respondem por mais de 20% das receitas globais do grupo.
Para tentar acalmar os ânimos, Bompard escreveu uma carta que, a pretexto de pedir desculpas, foi uma das mais claras demonstrações de arrogância, de desfaçatez vistas nas relações comerciais de alto nível nos últimos anos. O documento teve como destinatário o ministro da Agricultura Carlos Fávaro, que havia apoiado a decisão dos frigoríficos.
O texto chega a ser risível. Bompard, dá a entender que o Carrefour encara como um favor o fato de abastecer os açougues das cerca de 500 lojas que o grupo opera no país com carne produzida nos pastos brasileiros. E diz que tudo seguirá do jeito que tem sido até agora: os clientes do Carrefour na França seguirão comendo carne produzida pelos improdutivos pecuaristas locais — e os brasileiros, continuarão sendo abastecidos pelos produtores locais.
Até aí, tudo bem. Se a conversa fosse séria, a resposta adequada ao protecionista Bompard seria: très bien, monsieur! A empresa que o senhor comanda está completamente livre para encher as lojas do Brasil com a carne francesa. Desde que o senhor se comprometa a não praticar nenhum tipo de dumping e se disponha a vender o produto, sem os subsídios gordos que recebe do governo francês.
Será que o protecionista estaria disposto a fazer um acordo como esse? Será que ele estaria disposto a expor a carne francesa a uma competição honesta com a carne brasileira? Ou será que ele considera o consumidor brasileiro idiota o suficiente para comprar uma carne mais cara e de qualidade inferior à nacional só porque ela veio das superprotegidas fazendas francesas?
Já passou da hora do governo entender que defender as empresas e os produtos locais de forma firme e incisiva não é um favor, mas a obrigação de qualquer governo que se proponha a trabalhar pela prosperidade de seu país. Será que os franceses topam essa disputa? Claro que não!