No palco, chegou a viver quatro personagens em uma única peça. Em ‘O Mistério de Irmã Vap’, ele foi quebrando sucessivamente recordes de público e de permanência em cartaz. Ney Latorraca interpretou personagens antológicos em 60 anos de carreira
Foram 60 anos de carreira com personagens antológicos. Do drama à comédia, Ney Latorraca era único.
No dia 25 de julho de 1944, em Santos, no litoral de São Paulo, nasceram um menino e um destino.
“No momento que eu nasci ali já veio, nasceu um ator. Você nasce”, disse Ney Latorraca.
Destino confirmado na pia batismal. O padrinho foi Grande Otelo. A genética também teve seu papel. Os pais eram artistas de cassino. Quando o jogo foi proibido no Brasil, a fama virou pobreza e fome.
“Eu nunca tive brinquedo, porque eles não podiam me dar brinquedo. Tinha dia que não tinha comida em casa”, contou Ney.
Para se sustentar, Antônio Ney Latorraca foi caixeiro viajante, bancário, vendedor. Mas o alimento para a alma, ele só iria encontrar ao subir no palco.
“Você vê que meu nome tem Lator – “ator” – não tem? E raça, se por um ‘ç’”, destacou o ator.
Pronto! O menino e o destino tinham se encontrado e nunca mais iriam se separar. Artista, contra a vontade dos pais artistas.
“Quando eu falei ‘vou ser ator’, os dois falaram assim: ‘Meu Deus do céu’. Minha mãe ‘Nezinho, essa profissão…’. Aí eu falei: ‘Mas eu vou virar uma estrela para vocês’”, contou Ney Latorraca em entrevista a Jô Soares.
Ney Latorraca morre aos 80 anos
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Foi para o Rio de Janeiro em 1974. Em 1975 estreou na Globo, mas não disse nada. Quase uma novela inteira em silêncio. Mesmo assim, se destacou pela simples presença nos capítulos de “Escalada”.
“Sabe o que aconteceu? Depois que a novela estreou, um mês depois, o personagem fazia tanto sucesso, todo mundo queria saber quem era aquela pessoa que estava jogada assim pelos cantos na rede. Tanto que tinha um concurso aqui no Rio, que era um concurso no Brasil inteiro, para eleger o rei da televisão, e eu fiquei… Seis semanas depois, eu já estava concorrendo com o Tarcísio e o Roberto Carlos”, contou.
Em “Estúpido Cupido”, a última novela em preto e branco, ele era Mederiques. A pé ou de lambreta, por onde passava, Ney Latorraca era sucesso.
“Outro dia falaram assim para mim: ‘ Você tem o teu tapete vermelho?’. Eu falei: ‘Eu tenho. Quando ninguém põe, eu ponho para mim’. Sabe? Eu jogo o tapetinho, ponho um troninho assim e coloco uma coroa. Acho que todo mundo tem esse direito. As pessoas nasceram para isso. Ninguém nasceu para ser figurante, nasceu para ser estrela”, contou.
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E ele tornou-se estrela entre as estrelas. Admirado nos corredores da TV a ponto de virão bordão do personagem de Chico Anysio Alberto Roberto.
O ato de representar era a oportunidade de viver várias vidas ao mesmo tempo. Quando a cortina se abria, Ney Latorraca se multiplicava. No palco, chegou a viver quatro personagens em uma única peça. Em “O Mistério de Irmã Vap”, ele foi quebrando sucessivamente recordes de público e de permanência em cartaz.
O contrato de três meses no Teatro Casa Grande, no Rio, virou uma temporada de 11 anos em salas lotadas em várias cidades do Brasil. Onze anos, toda a semana em cena com Marco Nanini. A parceria perfeita.
“Eu acho que você só consegue brilhar quando você tem uma estrela do teu lado. Se você tem uma pessoa medíocre, você não é nada. Isso em todas as profissões”, disse.
É exatamente por isso que todos gostavam de estar ao lado de Ney Latorraca. Nem que isso custasse o próprio pescoço. Era para ser só uma participação especial de alguns capítulos da novela “Vamp”. Mas depois da cena inesquecível com Cláudia Ohana, o Conde Vlad virou o personagem principal.
“Eu mordi. Ao invés de falar ‘gostoso’, falei ‘gotoso’. Quando eu fiz esse ‘gotoso’, aí eu vi: eu dancei. Aí a novela ficou toda em cima dos vampiros, virou uma loucura. Eu fiquei até o final. O Vlad fez um baita sucesso. Passei nove meses com aquele dente, com aquela capa voando”, lembra.
Em 60 anos de carreira, Ney Latorraca deu vida a personagens que fizeram sucesso no teatro, no cinema e na TV
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O vampiro parecia conhecer o futuro. Foi como Vlad que Ney Latorraca fez a última participação dele na televisão, em 2019, na série “Cine Holiúdi”. E assim, coroou uma carreira de mais de 50 trabalhos na TV. E mais de 20 filmes no cinema. Entre eles, “O Beijo no Asfalto”, beijo antológico na tela com Tarcísio Meira, em 1980.
“Eu sou um ator que posso jogar em todas as posições: na primeira e na última”, disse.
E pode fazer o Brasil inteiro rir com uma única palavra. Foi na “TV Pirata”, uma revolução debochada no humor.
“Meses depois, só dava o Barbosa, e todo mundo, um absurdo aquilo: ‘Barbosa’. Foi um baita sucesso. Até hoje, eu passo na rua – eu sou um ator sério, um ator shakespeariano -, passo pela Lagoa e passa um cara assim lá no ônibus: ‘Faz o Barbosa aí!’. Que loucura, né?”, contou.
O que um ator pode amar mais do que estar em cena? Os aplausos depois de estar em cena.
“Eu gosto, claro que eu gosto. Se alguém não parar para falar comigo, eu fico arrasado. Não me reconhecem, aí eu envelheço 200 anos. Adoro dar autógrafo, adoro aparecer, sou muito vaidoso. Meu nome é Ney Latorraca, o meu nome é vaidade”, afirmou.
Reconhecer Ney Latorraca é reconhecer a história das nossas vidas.
“Minha sina é essa: andar pela Lagoa e ouvir assim: ‘Mederiquis!’, ‘Anabela gostosa!’, ‘Volpone!’. Pelo que eles vão falando, eu sei quem é, que idade eles têm. Vão se entregando, né?”, contou.
Ney Latorraca era engraçado porque sabia sorrir. Marcou nossas vidas porque soube viver com intensidade e paixão desde o instante em que nasceu ator:
“Eu sou o resultado de um grande amor que meus pais tiveram. Souberam criar um filho, criar um homem. Deu certo”.
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