Bolsonaro planejou, atuou e teve domínio de todos os atos para golpe de Estado, diz PF


O relatório, que teve o sigilo derrubado nesta terça-feira (26), cita o nome do ex-presidente 643 vezes. Segundo os investigadores, ministros, oficiais militares e assessores se reuniram várias vezes para discutir, a mando de Bolsonaro, estratégias para o golpe de Estado, que incluía plano de fuga. Bolsonaro planejou, atuou e teve domínio de todos os atos para golpe de Estado, diz PF
Reprodução/TV Globo
O relatório da Polícia Federal descreve a estratégia dos golpistas para espalhar suspeitas sem nenhum fundamento sobre as eleições.
Os investigadores apontaram que os ataques ao sistema eleitoral brasileiro começaram em 2019.
O objetivo seria sedimentar na população a falsa realidade de fraude eleitoral para, posteriormente, a narrativa atingir dois objetivos: inicialmente, não ser interpretada como um possível ato que só aconteceu por conta do resultado da eleição, em caso de derrota eleitoral e, o mais relevante, ser utilizada como fundamento para os atos que se sucederam após a derrota do então candidato Jair Bolsonaro no pleito de 2022.
A Polícia Federal destacou que o grupo produziu e espalhou um grande volume de informações falsas em vários canais, especialmente na internet, em que afirmavam, sem provas, que as eleições foram fraudadas.
Segundo a polícia, os investigados sabiam que a narrativa falsa de fraude eleitoral, sendo disseminada por muito tempo, seria extremamente eficiente em seu público-alvo, já que “o endosso de um grande número de usuários aumenta a confiança na informação que está sendo transmitida.”
O grupo continuou agindo da mesma forma logo após o fim das eleições de 2022, em que Lula se elegeu presidente.
A Polícia Federal indicou que, mesmo cientes da inexistência de fraudes nas eleições realizadas em 2022, o núcleo começou a atuar de forma mais incisiva, utilizando a metodologia desenvolvida pela milícia digital para reverberar a ideia de que as eleições foram fraudadas, estimulando seus seguidores a “resistirem” na frente de quartéis e instalações das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o golpe de Estado.
Enquanto um grupo tentava garantir apoio popular disseminando mentiras, outro núcleo jurídico atuava na produção de documentos na tentativa de legitimar o golpe de Estado.
A Polícia Federal colheu provas que evidenciam a participação de Jair Bolsonaro, Filipe Martins, Anderson Torres e Amauri Feres Saad na confecção da minuta de decreto de golpe. E citou a delação premiada do então ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, que afirmou que o ex-presidente recebeu a minuta do decreto.
O documento inicialmente previa a prisão de diversas autoridades, dentre as quais os ministros do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, além do presidente do Senado Rodrigo Pacheco. E também decretava a realização de novas eleições devido a supostas fraudes no pleito.
Ainda segundo Mauro Cid disse à PF, Bolsonaro teria determinado alguns ajustes na minuta do decreto.
Segundo o tenente-coronel, diante da recusa dos então comandantes do Exército e da Aeronáutica em aderirem ao golpe, o então presidente Jair Bolsonaro, no dia 9 de dezembro de 2022, reuniu-se com o general Estevam Theóphilo, comandante do Comando de Operações Terrestres (COTER), que aceitou executar as ações a cargo do Exército, caso o presidente Jair Bolsonaro assinasse o decreto.
Milícias digitais
Segundo a Polícia Federal, milícias digitais pressionaram militares em posição de comando a aderir ao plano golpista, mas os comandantes do Exército e da Aeronáutica, disseram não.
A investigação aponta que a adesão de militares era fundamental para o êxito do golpe de Estado. Na preparação, estavam no comando:
os generais da reserva Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa de Bolsonaro;
Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ex-comandante do Exército e ex-ministro da Defesa;
Mário Fernandes, ex-secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência;
Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira e Laércio Vergílio;
e o almirante da reserva e ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos.
Após a derrota de Bolsonaro, as mensagens trocadas entre os investigados se tornaram mais extremadas, de acordo com a investigação. E os ataques digitais passaram a ser concentrados nos militares de alta patente que se recusaram a aderir ao golpe.
Segundo a PF, os então comandantes do Exército, general Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Baptista Junior, rechaçaram qualquer adesão de suas respectivas forças ao intento golpista.
Já o almirante Almir Garnier, que comandava a Marinha, ratificou sua adesão aos atos criminosos.
Por isso, segundo a PF, os investigados continuavam a investir nos ataques pessoais contra os comandantes Freire Gomes e Baptista Junior, utilizando as “ferramentas” da milícia digital, disseminando em alto volume, de forma contínua e repetitiva, informações falsas, passando a imagem ao meio militar e aos adeptos do ex-presidente Jair Bolsonaro, de que os referidos comandantes seriam “traidores da pátria” e alinhados ao “comunismo.”
No dia 14 de novembro de 2022, o general da reserva Laércio Vergílio encaminhou ao general Freire Gomes uma mensagem:
“Cada vez mais a nação brasileira precisa de você e exige o seu posicionamento, Kid Preto.”
Em outra conversa, o general da reserva Braga Netto diz ao capitão reformado Aílton Barros, que teria recebido de outro militar das Forças Especiais do Exército, com a seguinte afirmação:
“Meu amigo, infelizmente tenho que dizer que a culpa pelo que está acontecendo e acontecerá é do General Freire Gomes. Omissão e indecisão não cabem a um combatente.”
Aílton Barros sugere continuar a pressionar o general Freire Gomes e propôs, caso o comandante insistisse em não aderir ao golpe de Estado: “vamos oferecer a cabeça dele aos leões.”
Braga Netto concorda: “Oferece a cabeça dele. Cagão.”
Braga Netto, de acordo com a Polícia Federal, também determinou que os ataques também fossem direcionados à família do comandante da Aeronáutica, brigadeiro Baptista Junior:
“Senta o pau no Baptista Junior (…) traidor da pátria. Inferniza a vida dele e da família. Elogia o Garnier” — em referência ao comandante da Marinha que teria aderido à ideia golpista — “e f… o BJ”, em referência a Batista Júnior.
Um mês depois, em 14 de dezembro, o general Laércio Vergílio envia uma série de mensagens a Freire Gomes. Em uma delas, afirma:
“Se o Bolsonaro cair, a nação brasileira cairá junto. É imperativo que as Forças Armadas intervenham urgentemente.”
Em outra mensagem para Freire Gomes, que segundo a PF foi possivelmente encaminhada, Laércio Vergílio faz um ultimato ao comandante do Exército. Diz:
“Ou você toma uma decisão ou pede pra sair. Conheço seu caráter, seu profissionalismo, mas você vai amargar essa mácula na sua reputação e passar para a história como o “Covarde Traidor da Pátria”?.
A Polícia Federal afirma que encontrou mensagens de uma pessoa identificada como Riva, que confirmam a adesão do almirante Almir Garnier ao intento golpista.
Na mensagem, Riva diz que o então comandante da Marinha é “patriota. Tinham tanques no Arsenal prontos.”
Essa mensagem foi encaminhada pelo tenente-coronel Sérgio Cavaliere ao tenente-coronel Mauro Cid.
Durante a conversa, Cavaliere diz:
“Fomos covardes, na minha opinião”.
Mauro Cid concorda:
“Fomos sim. Mas todos. Do Presidente da República e os comandantes das Forças”.
Na sequência, o então ajudante de ordens de Bolsonaro afirma:
“64 não precisou de ninguém assinar nada…”, em referência ao golpe militar de 1964.
Milícias digitais pressionaram militares em posição de comando a aderir ao plano golpista, revela PF
Reprodução/TV Globo
Manifestações, planos de assassinatos e medidas após golpe
A Polícia Federal detalhou como cada passo dos golpistas estava interligado, desde as primeiras manifestações em frente aos quartéis do Exército, passando pelos planos de assassinatos de autoridades, até chegar às medidas que deveriam ser adotadas após o golpe.
O relatório mostrou a participação dos golpistas na organização das manifestações. A investigação identificou que Mario Fernandes, então número dois da Secretaria-Geral da Presidência da República, era o vínculo do então governo Bolsonaro com os manifestantes golpistas.
A tropa de elite do Exército, chamada de “kids pretos”, planejou e executou ações clandestinas para prender e matar autoridades. O planejamento se iniciou no início do mês de novembro de 2022, após a derrota de Bolsonaro. O plano das ações clandestinas foi apresentado pelos denominados “kids pretos” na reunião realizada no dia 12 de novembro de 2022, na residência do general Braga Netto. A partir da aprovação pela organização criminosa, os militares começaram a implementar a logística necessária para a execução das ações.
Segundo o relatório da PF, o planejamento foi apresentado e aprovado pelo general Braga Netto. Ainda de acordo com o documento, o núcleo operacional planejou as ações clandestinas para prender, assassinar o ministro Alexandre de Moraes e os integrantes da chapa presidencial vencedora, o presidente Lula e o vice Geraldo Alckmin. As ações descritas no documento denominado “Punhal Verde Amarelo”.
O plano para assassinar Alexandre de Moraes foi chamado de “Copa 2022” e seria executado no dia 15 de dezembro. Eles não foram adiante, mas os conspiradores seguiram planejando o golpe.
Inquérito do golpe
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Outro plano golpista ‘Operação 142’
O relatório da Polícia Federal revela a descoberta de um outro plano golpista, chamado de Operação 142, uma alusão ao artigo 142 da Constituição Federal, que trata das Forças Armadas.
O material foi apreendido na sede do PL, na mesa de um assessor de Braga Netto. No documento, existem seis destaques no organograma:
Avaliação da conjuntura: relacionar todas as ingerências do Judiciário nas ações do Executivo e do Legislativo desde 2019.
Linhas de esforço: enquadramento jurídico do decreto 142. Convocação do Conselho da República e da Defesa; Discurso em cadeia nacional de TV e rádio; Preparação da tropa para ações; Mobilização de juristas e formadores de opinião; Preparar comunicados para difusão; Interrupção do processo de transição; Anulação de atos arbitrários do STF.
Centro de gravidade estratégico: decretar o artigo 142. “Dia D”.
Estado final desejado estratégico: restabelecer a ordem constitucional e o livre exercício dos direitos fundamentais.
Centro de gravidade político: anulação das eleições. Prorrogação dos mandatos. A substituição de todo TSE. E a preparação de novas eleições.
E por fim, estado final desejado político: Lula não sobe a rampa.
Segundo a PF, o documento demonstra que Braga Netto e seu entorno, ao contrário do explicitado no documento anterior, tinham clara intenção golpista, com o objetivo de subverter o Estado Democrático de Direito, utilizando uma interpretação distorcida do artigo 142 da Constituição Federal, de forma a tentar legitimar o golpe de Estado.
Plano golpista ‘Operação 142’
Reprodução/TV Globo
Bolsonaro
No inquérito do golpe, a Polícia Federal afirma que Jair Bolsonaro teve domínio direto sobre toda a trama golpista.
O relatório cita o nome do ex-presidente 643 vezes. Segundo os investigadores, ministros, oficiais militares e assessores se reuniram várias vezes para discutir estratégias para o golpe de Estado a mando de Bolsonaro. Havia, inclusive, um plano de fuga.
De acordo com o inquérito, foi o que aconteceu em dezembro de 2022, quando o ex-presidente foi para os Estados Unidos nas vésperas de Lula tomar posse.
A investigação identificou um plano para evasão e fuga de Bolsonaro do país, caso seu ataque ao poder Judiciário e ao regime democrático sofresse algum revés que colocasse sua liberdade em risco.
Os investigadores apontam no relatório que Bolsonaro sabia e concordava com a chamada “Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro”, documento criado para pressionar o comando do Exército a aderir à ruptura institucional, divulgado no dia 29 de novembro de 2022.
Nesse dia, Mauro Cid enviou uma mensagem para o tenente-coronel Sérgio Cavaliere, segundo o relatório, ratificando que o então presidente Jair Bolsonaro tinha conhecimento da situação. Na mensagem, ele diz:
“Ele mesmo sabe o que é isso, né. Ele tomou vinte dias de cadeia quando era capitão, porque escreveu carta à Veja. Foi pra Conselho de Justificação porque botaram na conta dele aquela, aquela operação pra, pra explodir Guandu”
O tenente-coronel se refere à prisão disciplinar do então capitão do Exército, Jair Bolsonaro, em 1986.
Em outro trecho do relatório, a PF faz novas referências a indícios de que Bolsonaro sabia de toda a trama. O documento diz que: “Em diversos momentos da presente investigação, bem como em outros fatos apurados que envolvem o ex-presidente da República, Mauro Cesar Barbosa Cid figura como elemento de blindagem de Jair Messias Bolsonaro. Em diversos momentos se identifica a implementação de ações que jamais seriam feitas sem o conhecimento do Presidente. Bem como a expectativa dos demais integrantes da ORCRIM que as informações passadas a MAURO CID ou repassadas por ele seriam de conhecimento lógico por parte do Presidente”.
Ainda segundo o relatório, Bolsonaro atuou para manter viva a narrativa de fraude eleitoral. Entre as ações, ele agiu para adiar a divulgação do relatório do Ministério da Defesa, já que não haviam sido encontradas irregularidades.
Os investigadores concluem que Bolsonaro atuou de forma clara para se manter no poder.
“Bolsonaro efetivamente planejou, dirigiu e executou, de forma coordenada com os demais integrantes do grupo, desde 2019, atos concretos que objetivavam a abolição do Estado Democrático de Direito, com a sua permanência no cargo de Presidente da República Federativa do Brasil, fato que não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade, dentre as quais, a resistência dos comandantes da Aeronáutica, Tenente-Brigadeiro Baptista Junior, e do Exército, General Freire Gomes, e da maioria do Alto Comando, que permaneceram fiéis à defesa do Estado Democrático de Direito, não dando o suporte armado para que o então presidente da República consumasse o golpe de Estado”.
O relatório da PF cita pelo menos oito elementos como indícios da participação do ex-presidente Bolsonaro na trama do golpe, afirmando que Bolsonaro planejou, dirigiu e executou os atos que levariam à execução da abolição do Estado Democrático de Direto.
Bolsonaro já havia sido indiciado em outros dois inquéritos: da falsificação do cartão de vacinas e a apropriação indevida das joias sauditas. Esses crimes, segundo os investigadores, faziam parte do mesmo objetivo: impedir a posse do governo eleito legitimamente.
O que dizem os citados
O Jornal Nacional procurou a defesa de Jair Bolsonaro, mas não teve retorno.
Braga Netto declarou que nunca se falou em golpe e que a verdade será esclarecida no processo legal.
A defesa de Almir Garnier disse que ele é inocente.
Augusto Heleno e Alexandre Ramagem não quiseram se manifestar.
Felipe Martins disse que o relatório da Polícia Federal não oferece uma única prova que o conecte com núcleo jurídico, minuta golpista ou qualquer coisa dessa natureza.
Amauri Saad negou envolvimento com qualquer movimento golpista e afirmou ser investigado por ter escrito um ensaio acadêmico.
Laércio Vergílio não quis se manifestar.
A reportagem não conseguiu contato com Mário Fernandes e Sérgio Cavaliere.
O Jornal Nacional entrou em contato com os demais citados nas reportagens e perguntou se eles queriam se manifestar. Mas até o momento não recebeu resposta.
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