Documento de 1858, da época do Império e preservado pelo Judiciário Tocantinense, revelou como foi a negociação para uma mulher chamada Paula conseguir sua carta de alforria. Caso tramitou na Comarca de São João da Palma, atual Paranã, no interior do Tocantins. Processo para pedido de liberdade da escrava Paula, no Tocantins
Divulgação/Esmat
Um documento guardado há 166 anos pela Justiça revelou um episódio que representa a luta por direitos e pela liberdade no período de escravidão durante o Brasil Império. Paula, uma idosa e com saúde frágil, conseguiu uma carta de alforria 30 anos antes da Lei Áurea, que extinguiu a escravidão no ano de 1888. Ela viveu em um dos primeiros povoados do antigo norte goiano, que veio a se tornar o Tocantins.
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O documento histórico foi divulgado pela Escola Superior da Magistratura Tocantinense (Esmat) no Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado na quarta-feira (20). As petições que pediram a liberdade da mulher foram digitalizadas com equipamentos de última geração, que visam preservar documentos históricos.
A data do pedido de liberdade é do dia 24 de março de 1858 e por ter sido escrito à mão, alguns detalhes se perderam com o tempo e estavam inelegíveis. Mas, é possível entender o contexto em que a mulher conseguiu a liberdade na Comarca de São João da Palma, atual Paranã.
Clique aqui e confira os documentos digitalizados
Clique aqui e confira a transcrição do processo da escrava Paula
Herança
Por mais difícil que seja pensar nessa condição de vida diante da luta antirracista do século XXI, Paula foi deixada como herança aos filhos de Bento Rodrigues Lourenço, seu proprietário. Após uma vida inteira sendo considerada como ‘propriedade’, ela foi até um cartório da comarca fazer o pedido de liberdade.
Em meados de 1858 havia um movimento abolicionista e estava em vigor a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que proibia o tráfico de escravos vindos da África para o Brasil. A Lei Áurea, só foi assinada pela princesa Isabel em 1888.
Documentos históricos foram digitalizados pela Esmat
Divulgação/Esmat
A petição da então escrava foi despachada pelo primeiro substituto do Juiz Municipal e Órfãos em exercício – como era chamado o cargo na época – tenente-coronel Bernardino de Carvalho Pinto e passada ao escrivão Theodozio Antonio da Silva.
Em um dos documentos endereçados ao chamado Juiz de Órfãos, o curador geral do Juízo, Antonio Ribeiro da Fonseca, informou que Paula fazia parte do inventário de Bento Rodrigues e que ela – chamada de suplicante da petição – estava avaliada em 60 mil réis.
Também afirmou que os herdeiros não se opunham em dar liberdade a Paula.
“Não havendo dúvida se digne aceitar a quantia porque foi avaliada a suplicante para ser recolhida aos cofres e lhe mande VS [vossa senhoria] passar sua carta de liberdade antes de proceder a arrematação ordenada por VS [vossa senhoria] e assinada […] Para VS [vossa senhoria] Servindo deferir suplicante com correta justiça”, diz trecho.
Em mais um pedido ao juiz de órfãos, o curador intercedeu por Paula afirmando que ela serviu por anos o antigo proprietário e por “sua avançada idade, e moléstia visível”, e pediu que o Juízo aceitasse o pagamento da “avaliação por sua liberdade”.
Liberdade mediante pagamento
“Aos vinte e quatro dias do mês de março de mil oitocentos e cinquenta e oito”, como era escrito manualmente pelos atores do Judiciário no Brasil Império, a escrava Paula conseguiu a liberdade, mediante o pagamento dos 60 mil réis.
“[…] a quantia de sessenta mil réis pela qual foi avaliada a suplicante Paula para ser a dita quantia divisada pelos interessados na herança; se passe carta de liberdade a suplicante a qual pagou as custas”, destacou a sentença do juiz de órfãos em exercício tenente-coronel Bernardino de Carvalho Pinto.
O dinheiro foi pago ao juízo e destinado aos cofres públicos.
‘Conta’ no judiciário
Outro ponto de destaque no caso é a forma como a petição da escrava teve custos na Justiça da então Comarca de São João da Palma, chamado no documento de ‘conta’.
Paula foi cobrada pelos “autos”, “termo de vista”, “dito”, “conclusão”, “publicação”, “selo”, “promotor resposta” e “definitiva”, entre outros, com valores entre $240 até 2$000, conforme cifras da época.
O total do processo ficou em 6.240 réis. A lista com a conta, descrita no processo, destacou “O Dinheiro da Escrava achasse em Juizo”, ou seja, tinha sido pago por ela.
‘Conta” do processo para a liberdade da escrava Paula, no Tocantins
Divulgação/Esmat
Retorno ao passado
Muitas dúvidas surgem com relação à história de Paula, principalmente de como ela teria conseguido o dinheiro para pagar pela liberdade, levando em consideração as dificuldades que os escravizados enfrentavam à época.
Talvez essa dúvida jamais seja sanada, mas conforme explica a historiadora e professora da Universidade Federal do Tocantins (UFT) Rita de Cássia Guimarães Melo, os escravizados conseguiam juntar alguns trocados de diferentes formas.
“Pode ser que ela tenha conseguido acumular o que se chama pecúlio, um pequeno pecúlio. Pode ser que ela fosse uma pessoa de talento, que prestasse bons serviços, então era sempre agraciada com algum tipo de dinheiro, algum tipo de bem material, então isso era muito comum eles conseguirem. Muitos escravos só conseguiram a liberdade comprando a alforria aos seus senhores”, disse Rita.
O contexto histórico da época também pode levar ao entendimento de que os herdeiros de Bento Rodrigues Lourenço, que ficaram com Paula após a morte do pai, podem ter aceitado a liberdade por diversos motivos, entre eles a “idade avançada e moléstia visível”, como diz um dos documentos endereçado ao juiz de órfãos.
“Você não quer um escravizado porque você não pode escravizar uma pessoa doente. Ela não cumpre mais o papel de trabalhar, então esses escravos velhos eles foram descartados”, relembrou a historiadora, citando a Lei dos Sexagenários (1885) que causou um abandono de pessoas com mais de 60 anos e que não podiam mais ser propriedade dos senhores.
Além disso, também há o fator de que, com o trabalho duro que os escravizados geralmente eram submetidos, não era comum que as pessoas negras que viviam nessas condições chegassem aos 60 anos.
“A média de vida era muito curta. Então digamos que talvez ela estivesse com 40 anos, aí sim era considerado velha porque já não procria, já não tem as mesmas forças ou já teve muitos filhos. Lembrando que as mulheres nesse período trabalhavam duro. As mulheres negras tiveram sobre as costas que carregar o cotidiano dessas famílias dos senhores cozinhando, lavando, passando, cuidando de crianças. E até hoje isso ainda se reflete na dependência de ter em casa alguém para limpar a sua casa”, reforçou Rita, sobre o período histórico que viveu a escrava Paula e que causou reflexos na formação da sociedade atual.
Para a historiadora, quando se pensa no Tocantins a reflexão acontece com os acontecimentos a partir de 1988, com a criação estado. Mas há muita história antes desse período que envolve a época do Brasil Colônia e Império, e que não devem ser esquecidos.
“Não tem como fugir desse passado, 30 anos para a história é muito pouco. Então se nós não recuperamos a história do Tocantins, nós vamos ficar falando desse eterno presente. Uma boa forma de construir esse passado era reconstruir essa relação do norte com o sul de Goiás e para compreender como essa região chegou, em como em como é hoje. É importante ter documentos históricos na região para que outros pesquisadores também venham pesquisar a história indígena, a história da escravidão, pesquisar os quilombos, pesquisar a forma de apropriação do meio ambiente. Tudo isso poderia ser pesquisado nessa região para tornar esse lugar mais conhecido”, afirmou Rita.
Levantamento histórico continua
Outros documentos judiciais do período imperial e outros momentos históricos do Tocantins serão catalogados e divulgados pela Escola da Magistratura. O objetivo é levar à população à compreensão do passado. Conforme a Esmat, o acesso a esses arquivos possibiliza a realização de pesquisas, estudos e debates sobre a história do Tocantins.
Assim como a história da escrava Paula, que conseguiu a liberdade após pagamento da carta de alforria, muitas histórias semelhantes estão registradas em documentos históricos e guardados nos fóruns e cartórios do Tocantins.
Para a historiadora, esses documentos possuem grande importância e precisam de um espaço para serem preservados para facilitar a pesquisa.
“A ESMAT está cumprindo esse papel de organizar esses documentos, mas existem muitos documentos que estão por aí completamente desorganizados e muitos perdidos, perdidos porque estão mal acondicionados. E quando esses documentos se perdem, você perde a memória, você perde a história, você perde a capacidade de compreender o passado. Então, esses documentos são extremamente importantes”, destacou a professora, que é doutora em história pela USP e tem pós-doutorado na UFRJ.
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