Juliane Koepcke viajava com a mãe na véspera de Natal de Lima a Pucallpa; ela sobreviveu à queda e perambulou por 11 dias pela selva amazônica. Pouco mais de três meses após o acidente, Juliane Koepcke, ainda com 17 anos, desembarcou pela primeira vez na terra de seus pais, a Alemanha, onde foi recebida com grande interesse pela mídia
AP
Ela caiu do céu, literalmente, presa em um assento de um avião que se desintegrou em pleno ar, a 3 mil metros de altura.
Assim começou a incrível aventura de uma adolescente que sobreviveu não apenas ao acidente de avião e à enorme queda, como também a uma perigosa jornada de vários dias pela selva amazônica.
Esse caso, ocorrido no início dos anos 1970 no Peru, é contado em um episódio da terceira temporada do podcast Que História!, da BBC News Brasil. Ele pode pode ser ouvido nas principais plataformas de podcast, como Spotify e Apple Podcasts, e no canal da BBC News Brasil no YouTube.
O voo 508 da companhia aérea peruana Lansa partiu de Lima pouco antes do meio-dia do dia 24 de dezembro de 1971 em direção a Iquitos, no interior do Peru.
À bordo estava a germano-peruana Juliane Koepcke, estudante de 17 anos, filha de zoólogos, viajando com a mãe para passarem o Natal com o pai em uma estação de pesquisa na selva amazônica perto da cidade de Pucallpa, a primeira escala desse voo.
“Os passageiros estavam bem irritados porque o voo estava 7 horas atrasado, mas isso era normal no Peru. Mas quando entramos no avião, tudo parecia estar bem”, contou Juliane ao programa Outlook da BBC em 2012.
“Trinta minutos após a decolagem nos serviram um sanduíche, um lanchezinho, e, de repente, entramos em nuvens muito pesadas e escuras. As nuvens cobriram o avião alguns minutos depois. Estávamos no meio de uma tempestade muito, muito forte.”
“O avião estava pulando para cima e para baixo. A turbulência era muito, muito forte. Estava muito escuro ao nosso redor. E víamos relâmpagos ao redor do avião. Eu e minha mãe estávamos segurando as mãos uma da outra, completamente mudas.”
“Passageiros começaram a chorar e a gritar. E os bagageiros em cima dos passageiros se abriram e tudo começou a cair. Pacotes, presentes, flores, bolos de Natal… ”
“Depois de cerca de 10 minutos ou um pouco mais no meio dessa tempestade, vi uma luz muito, muito brilhante no motor externo direito da aeronave. E naquele momento minha mãe disse com muita calma: ‘é o fim, agora está tudo acabado’. E essas foram as últimas palavras que ouvi dela.”
“A partir daquele momento tudo aconteceu muito, muito rapidamente. O avião deu um salto e começou a cair. E eu me lembro até hoje das pessoas gritando desesperadamente. Estava escuro como breu ao nosso redor, e eu ouvia o rugido dos motores do avião em queda livre.”
“Foi um barulho que encheu minha cabeça completamente. E então, de um momento para o outro, tudo isso acabou, tudo isso parou. E eu estava fora do avião.
O avião, um Electra de 4 motores à hélice, com 91 pessoas a bordo, fora atingido por um relâmpago e se partiu em pedaços a 3 mil metros de altura. Juliane, que estava sentada ao lado da janela no lado direito do avião, de repente se viu em queda livre, presa no assento triplo.
“Lembro claramente que me senti completamente sozinha naquele momento, em queda livre. Estava presa pelo cinto de segurança ao banco, de cabeça para baixo. E me lembro do sussurro do vento. Foi o único barulho que notei. Eu vi a copa da selva girando abaixo de mim. E então, perdi a consciência.”
Juliane acordou na manhã seguinte em plena selva amazônica. Ela sobrevivera a uma queda livre de 3 mil metros. Especialistas mais tarde especularam que o assento triplo, ao qual ela estava presa, deve ter funcionado com uma espécie de paraquedas em meio a correntes ascendentes de ar provocadas pela forte tempestade. E a queda foi amortecida pelas copas das árvores.
Mas ela não sobreviveu ilesa. Sofrera uma concussão grave, tinha quebrado a clavícula, rompido o ligamento em um dos joelhos, tinha cortes, alguns profundos, nas pernas e nos braços.
“Eu estava bem tonta e não conseguia ficar de pé. Rastejei pelo chão e tentei procurar minha mãe. Gritei em espanhol, em alemão e também em inglês. E só ouvia as vozes da selva. Não achei ninguém. Eu estava completamente sozinha. Foi uma sensação bem desesperadora.”
Por sorte, Juliane passara um ano e meio com os pais na pequena estação de pesquisa biológica Panguana fundada por eles para estudarem a biodiversidade da flora e da fauna da região. Ou seja, ela tinha uma ideia de como se comportar para sobreviver na selva.
Machucada, usando apenas um minivestido de verão sem mangas e a sandália do pé esquerdo – porque tinha perdido a outra – ela seguiu andando pela floresta.
Ela contou que ouviu, alguma vezes, o barulho de aviões sobrevoando a selva, que provavelmente estavam à procura da aeronave perdida, mas que ela não tinha como chamar a atenção deles.
“É uma floresta muito densa. Foi desesperador. Não tinha como ser avistada por eles. E eles não conseguiram detectar nenhuma parte do avião porque ele se espatifou em vários pedaços e desapareceu sem deixar vestígios.”
“Era a estação de chuvas e chovia muito, de dia e à noite. E eu sozinha apenas com aquele vestidinho…De dia era muto quente, fazia 40 graus Celsius, e de noite fazia frio. Eu sentia muito frio.”
Juliane Koepcke revisitou, mais de duas décadas depois, o local do acidente na selva amazônica peruana
WERNER HERZOG FILM/BBC
Juliane seguiu andando pela floresta, se alimentando apenas das balas e doces que encontrara em um saco plástico perto de onde tinha caído. Esses doces duraram 4 dias. Nos sete dias seguintes ela não tinha o que comer. Por outro lado, tinha bastante água, pois passou a seguir a beira de um riacho que encontrou pelo caminho.
“Eu estava andando na beira desse riacho que havia encontrado e de repente, no quarto dia, ouvi o barulho de um urubu-rei pousando. Eu conhecia aquele barulho, da estação de pesquisa dos meus pais. Fiquei bastante apreensiva, porque sabia que eles só pousam quando há muita carniça.”
“E numa pequena curva do riacho encontrei um assento triplo do avião, encravado no chão. O impacto com o solo foi tão forte que abriu um buraco de quase 1 metro. Os três passageiros sentados ali morreram imediatamente, o que de certa forma foi um alívio – achei que pelo menos eles não tinham sofrido. Mas foi a primeira vez na vida que vi cadáveres. Não sabia o que fazer. Fiquei paralisada de pânico.”
Os dias foram passando, e a fome, aumentando. Sem comida, Juliane foi ficando cada vez mais fraca. No décimo dia, ela mal conseguia andar.
“Eu estava muito fraca. Não conseguia ficar de pé. Encontrei um rio maior, que passei a seguir. Mas era difícil para mim andar normalmente à beira desse rio. Eu estava muito, muito fraca e desesperada, me sentindo muito sozinha. Me sentia num universo paralelo, longe de qualquer ser humano. Por muito pouco eu não desisti de seguir em frente.”
“Eu estava procurando um local onde pudesse passar a noite, um local protegido, uma raiz de árvore grande, ou uma encosta. E olhando em volta, de repente vi, preso na beira do rio, um barco. Mal conseguia acreditar, achei que já estava louca, tendo alucinações. Foi como uma injeção de adrenalina. Me aproximei do barco, toquei nele e vi que era real. Foi um momento incrível para mim.”
“Ao lado do barco, na beira do rio, havia um pequeno caminho entrando na selva e subindo uma encosta, que tive grande dificuldade em subir, porque estava muito fraca. Mas finalmente consegui e encontrei uma cabana com telhado de folha de palmeiras, no típico estilo de habitação indígena. Lá estava o motor de popa daquele barco, um barril vazio e nada mais. Resolvi passar a noite ali. Já estava muito escuro.”
“Eu tinha uma ferida no braço direito que estava infectada com larvas. Elas já estavam crescidas, com cerca de um centímetro de comprimento. Eu lembrei que nosso cachorro teve uma infecção dessas na nossa estação de pesquisas e que meu pai colocou querosene nela. E conseguiu, assim, tirar os vermes da perna do cachorro. Me lembrei disso e resolvi abrir o tanque do motor de popa. Foi difícil, mas depois de um certo tempo eu consegui. Havia ali um pequeno tubo, que usei para chupar a gasolina. Pus ela na ferida, foi uma dor fortíssima. Mas os vermes finalmente saíram da ferida – consegui tirar cerca de 30 larvas. E fiquei bastante orgulhosa disso.”
Juliane Koepcke refez o trajeto na selva amazônica peruana em um documentário lançado em 1998 pelo cineasta Werner Herzog, que por muito pouco não embarcara no mesmo voo fatídico em 1971
Werner Herzog Film / BBC
No dia seguinte, choveu muito e Juliane resolveu ficar na cabana.
“No final da tarde, de repente, ouvi vozes de homens conversando. Foi como ouvir as vozes de anjos. Foi um dos momentos mais intensos que já passei.”
“Eles pararam alarmados quando me viram. Num primeiro momento, acho que pensaram que eu era uma espécie de deusa da água e não souberam o que dizer. Mas felizmente falo bem espanhol e me apresentei a eles. Contei que era passageira do avião da Lansa que caiu e aí eles se aproximaram. Mais dois homens saíram da floresta e eram cinco ao todo, todos pescadores. Eles trataram minhas feridas e me deram comida. E no dia seguinte, bem cedo pela manhã, me levaram de volta à civilização.”
De barco, o grupo viajou por várias horas até um assentamento. De lá, Juliane foi levada de avião a um hospital em Pucallpa, onde recebeu tratamento e se encontrou com seu pai.
Alguns dias depois, o pai foi chamado para identificar o corpo de sua mulher, mãe de Juliane. Todos os corpos, 90 ao todo, de passageiros e tripulantes, foram encontrados na floresta, com ajuda de informações fornecidas por Juliane. No resgate, foi constatado que 14 pessoas ainda estavam vivas após a queda do avião, mas morreram por causa de seus ferimentos.
As autoridades concluíram que o acidente foi causado por erro humano. Que se o piloto tivesse seguido o protocolo para situações como a enfrentada pelo avião, teria retornado ao aeroporto de Lima. E que o fato de o avião estar levando pessoas para passarem o Natal com entes queridos pode ter pesado na decisão do piloto de enfrentar a tempestade.
Mais de vinte anos depois, Juliane acabaria visitando o local do acidente e refazendo o trajeto de dez dias que percorreu na Floresta Amazônica junto com o cineasta alemão Werner Herzog.
Por muito pouco que este não tinha embarcado no mesmo voo fatídico, quando estava pesquisando locações para o filme Aguirre, a Cólera dos Deuses. Por isso, quis fazer o documentário sobre o calvário de Juliane, que acabou sendo chamado de Asas da Esperança.
“Primeiro eu me recusei a participar”, contou Juliane, “porque não sabia como isso me afetaria. Mas depois eu topei, achei que seria um passo importante para mim. Acabamos vendo os destroços – que ainda estavam lá! – e tudo isso me colocou cara a cara com minhas próprias lembranças. Foi uma espécie de terapia para mim.”
Depois de recuperada, Juliane Koepcke viajou pela primeira vez, à Alemanha, país de seus pais e onde sua incrível história tinha despertado grande interesse da mídia.
Ela acabou ficando e se formou em biologia. Após a morte de seu pai, ela trabalhou por um tempo no comando da estação de Panguana no Peru e, depois, voltou para a Alemanha. Em 2011, lançou uma autobiografia, chamada Quando caí do Céu.
Juliane se formou em biologia e é mastozoóloga, especializada em morcegos
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