Opinião: Narcocracia visa desequilíbrio institucional

Flavio Goldberg, advogado e mestre em DireitoDivulgação

A infiltração do crime organizado nas estruturas de poder estatal e empresarial representa uma ameaça inominável à estabilidade democrática e ao Estado de Direito. A autocracia terrorista, viabilizada pelo narcotráfico, não se limita à esfera da violência ostensiva ou ao domínio territorial nas periferias. Sua atuação se expande de maneira silenciosa e insidiosa, perpassando as camadas mais altas da sociedade, operando na tessitura do tecido institucional e nas engrenagens econômicas de um país. Trata-se de um fenômeno sofisticado, onde as facções criminosas não apenas financiam o terror, mas se imiscuem nas instâncias de decisão e formulação de políticas públicas, influenciando diretamente o desmantelamento dos mecanismos de repressão estatal.

A lógica do financiamento do crime organizado vai muito além das operações convencionais de lavagem de dinheiro. Observa-se uma estratégia deliberada de inserção em esferas que, tradicionalmente, deveriam ser impermeáveis à ação criminosa. Concursos públicos, por exemplo, tornaram-se um dos veículos para essa infiltração, com organizações criminosas patrocinando candidatos para que, uma vez aprovados, possam influenciar investigações, liberar recursos e fragilizar a capacidade estatal de repressão. Trata-se de uma cooptação sistêmica, onde o domínio não se dá pela força, mas pela corrosão gradual da moralidade institucional.

De igual modo, o empresariado de alto porte se converte, consciente ou inconscientemente, em veículo para a circulação de capitais ilícitos. O fenômeno da simbiose entre grandes corporações e esquemas de lavagem de dinheiro não é novo, mas sua sofisticação atingiu níveis alarmantes. Empresas que ostentam uma fachada de respeitabilidade são, na verdade, mecanismos eficientes para a conversão de recursos ilícitos em ativos aparentemente lícitos, dificultando a ação de órgãos de controle financeiro. O conluio entre setores empresariais e facções criminosas não se limita a vantagens econômicas diretas; há uma confluência de interesses na sustentação de um modelo de governança que repele o fortalecimento dos órgãos fiscalizadores e das forças de segurança.

A degeneração institucional não seria completa sem a captura de agentes políticos e legisladores. A criminalidade organizada se vale de sofisticados mecanismos de influência, que vão desde o financiamento de campanhas eleitorais até a formulação de pautas legislativas que fragilizam a estrutura policial e reduzem os mecanismos de enfrentamento ao crime. O discurso garantista, quando empregado de forma enviesada, transforma-se em instrumento útil para o avanço do crime organizado, fragilizando os pilares normativos que deveriam proteger a sociedade. A repressão ao crime não pode ser confundida com autoritarismo; ao contrário, sua ausência fomenta a emergência de uma nova forma de dominação, em que o terror se impõe não pela brutalidade ostensiva, mas pela captura paulatina das engrenagens institucionais.

A desarticulação do aparato repressivo do Estado não ocorre por inépcia, mas por interesse. Medidas legislativas que limitam a atuação policial, que obstruem investigações financeiras e que reduzem o alcance das medidas de inteligência não são frutos do acaso. Elas decorrem de um planejamento meticuloso, onde a criminalidade organizada, travestida de interlocutora política legítima, impõe sua agenda e neutraliza as iniciativas que visam enfrentá-la. A desconstrução da autoridade policial e a difamação das forças de segurança são artifícios recorrentes desse modelo de dominação, cujo objetivo último é desestabilizar o monopólio estatal da violência e permitir a ascensão de um poder paralelo.

Como em qualquer instituição, seja ela de caráter estatal ou privado, com ou sem fins lucrativos, como autarquias, institutos, empresas e organizações não governamentais, há sempre a possibilidade da presença de indivíduos com desvios de conduta, os quais devem ser identificados e afastados. O controle interno e a depuração dos quadros institucionais são imprescindíveis para a manutenção da integridade das estruturas administrativas. Nesse sentido, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo tem adotado postura diligente na remoção de agentes públicos que, sob o véu da boa intenção, ingressam nas fileiras da segurança pública, mas, na realidade, servem a interesses escusos. No entanto, faz-se necessário um zelo extremo para que tais medidas não se prestem a perseguições infundadas, baseadas exclusivamente em delações de criminosos sem qualquer substrato probatório concreto, como exemplo, o afastamento do diretor do Deic. O uso indiscriminado dessas delações, desprovidas de evidências materiais, pode comprometer a estabilidade do aparato policial, beneficiando, assim, as facções criminosas que têm sofrido perdas recordes em São Paulo, tanto no que tange à estrutura organizacional quanto aos prejuízos financeiros impostos ao tráfico de entorpecentes.

O que se presencia, portanto, não é apenas um fenômeno de corrupção pontual ou de fragilização episódica das instituições. Trata-se de uma reorganização estrutural do poder, onde o crime se institucionaliza e se converte em protagonista das decisões políticas e econômicas. O combate a essa realidade exige mais do que respostas reativas; impõe a necessidade de um realinhamento estratégico do Estado, com medidas que reforcem a transparência no serviço público, intensifiquem o controle sobre o fluxo de capitais e garantam a autonomia e fortalecimento das forças de repressão.

O enfraquecimento do Estado não é uma contingência inevitável, mas um projeto deliberado daqueles que se beneficiam do caos. O enfrentamento a essa nova forma de autocracia exige um compromisso inequívoco com a ordem jurídica e a preservação dos mecanismos institucionais que asseguram a soberania do Estado. A leniência diante da infiltração criminosa não é apenas uma falha administrativa; é uma abdicação da própria ideia de civilização.

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