Famosa pelas belezas naturais, pelo surf e pelo verão badalado, Florianópolis ganhou um título diferente no último ano. A cidade foi nomeada Capital Nacional das Startups em setembro de 2024, por meio de um decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Mas, afinal, como uma ilha sustentada pelo turismo e pelo funcionalismo público se tornou um polo de inovação no país?
Sem produção agrícola em Florianópolis, a tradicional pesca da tainha, de origem indígena, era a principal atividade econômica dos colonizadores açorianos que chegaram à capital catarinense no século XVIII. O turismo, tão famoso numa cidade de 42 praias, só passou a ser entendido como um pilar da economia ao fim da década de 1960, com a criação de políticas públicas de fomento.
Ao mesmo tempo, Florianópolis também se transformava com a chegada da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), fundada em dezembro de 1960. A Escola de Engenharia Industrial, criada na universidade em 1962, foi a semente para o desenvolvimento tecnológico e o surgimento de startups na Ilha de Santa Catarina.
O que são startups e por que crescem em Florianópolis?
Empresas jovens e inovadoras que buscam criar um modelo de negócios repetível e escalável: esse é a base para entender o que é uma startup. No entanto, o próprio conceito de ideia inovadora implica também um cenário incerto. De acordo com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, nove em cada dez dessas empresas encerram suas atividades nos primeiros anos.
“A startup é aquela empresa que, independente do setor, vai colocar uma ideia diferente da que existe hoje e que tem um risco enorme de não dar certo. Uma coisa muito diferente e que tem muito risco: isso é startup”, define Daniel Leipnitz, conselheiro e ex-presidente da Acate (Associação Catarinense de Tecnologia).
Segundo a Acate, são 3,77 empresas de tecnologia a cada mil habitantes em Florianópolis, que fica atrás apenas de São Paulo, com 4,12. O setor é responsável por 7,5% do PIB (Produto Interno Bruto) de Santa Catarina e gera atualmente mais de 32 mil empregos.
A capital catarinense abriga mais de 670 startups — 42% do estado. Segundo o Startups Report Santa Catarina 2024, elaborado pelo Sebrae, os principais segmentos são tecnologia da informação, saúde e bem-estar, gestão e consultoria e educação.
Tal contexto fez com que Florianópolis recebesse o apelido de “Ilha do Silício”, em referência ao Vale do Silício, na Califórnia, que abriga startups e empresas globais de tecnologia como a Apple, o Google e o Facebook.
“O ecossistema contribui muito porque nós somos um produto do meio. Por isso que as pessoas vêm para Florianópolis: elas entendem que tem um ecossistema maduro, que fornece um grande suporte”, considera Diego Ramos, atual presidente da Acate.
O levantamento do Sebrae mostra que os principais produtos das startups catarinenses são o desenvolvimento de softwares (50,53%), seguido de serviços (33,08%) e produtos físicos (9,42%).
Cerca de 44% estão em estágio inicial e ainda não têm faturamento, enquanto 29% faturam entre R$ 81 mil e R$ 360 mil. O Startups Report Santa Catarina 2024 também aponta que 64,25% operam no modelo de negócios B2B, isto é, de empresa para empresa.
Da Ilha para o mundo
Um exemplo de modelo B2B é a Indicium, startup criada em 2017 por quatro jovens manezinhos — isto é, nativos de Florianópolis. A ideia surgiu durante um curso de empreendedorismo oferecido pela Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina) e ministrado por uma equipe da UC Berkeley (Universidade da Califórnia em Berkeley).
“A gente entendeu que existia um grande gap nas estratégias de dados, entre as empresas que queriam se tornar maduras analiticamente e a realidade. E, para isso, um produto sozinho não ia resolver. A gente precisava de pessoas qualificadas para implementar estratégias”, conta Isabela Blasi, de 28 anos, uma das fundadoras da Indicium.
A empresa é especializada em criar soluções “data-driven”, ou seja, orientadas por dados, e já atendeu marcas como PepsiCo, Bayer, Burger King, Volvo e a Fundação Bill e Melinda Gates.
“Uma empresa data-driven é uma empresa que possui uma fundação de dados escalável, que possui treinamentos, alfabetização em dados nas suas áreas, que todo mundo entende essa linguagem e que não existe medo em volta disso”, explica a co-fundadora e diretora de Desenvolvimento de Negócios.
Isabela entrou para a lista Forbes Under 30 2024 na categoria de Tecnologia e Inovação. Hoje formada em direito, ela ainda era estudante quando criou a startup ao lado de Matheus Dellagnelo e dos irmãos Vitor e Daniel Avancini.
A Indicium já se tornou uma empresa global, com sede em Nova York e escritórios em Florianópolis e São Paulo. Mesmo assim, metade dos 350 funcionários está na capital catarinense. Isabela, inclusive, pretende ficar na cidade natal.
“Eu gosto muito de morar em Floripa e dessa flexibilidade de poder encontrar os clientes e estar sempre no mercado, viajando bastante, mas também mantendo minha base aqui. Acho que é super importante para nossa cultura”, considera a empreendedora.
Este ano, a Indicium recebeu um aporte de US$ 40 milhões (cerca de R$ 200 milhões) da Columbia Capital, fundo estadunidense de “venture capital” ou capital de risco. A co-fundadora ressalta que a reputação de Florianópolis como polo de inovação foi essencial na captação do investimento.
“Eles nunca tinham investido no Brasil, o que gera uma insegurança para eles. A gente precisou demonstrar, além da nossa credibilidade de um negócio saudável, a importância da região. Então estar em Floripa foi muito legal”, considera.
O que faz de Florianópolis a Capital Nacional das Startups?
Quem vê os parques tecnológicos e centros de inovação não imagina que essa história começou com estudantes no fim da década de 1970. Até então, a economia da cidade se baseava no funcionalismo público e no turismo sazonal.
Florianópolis, ainda por cima, não poderia abrigar indústrias tradicionais por causa da poluição. Segundo a prefeitura, atualmente cerca de 59% do território da cidade é área de preservação ambiental.
Desse modo, os profissionais que se formavam em cursos de engenharia na UFSC precisavam procurar emprego em centros industriais como Joinville e Blumenau.
“Essa é uma história muito linda. Hoje a gente vê esses prédios bonitos, esses espaços bacanas, mas isso tudo começou porque as pessoas queriam sobreviver aqui. Precisavam encontrar alguma forma de sobreviver para não ir embora de Floripa”, afirma Daniel Leipnitz.
Ele conta que a história começou com doze jovens recém-formados que decidiram abrir seis startups de tecnologia em Florianópolis. Dessa geração, nasceram gigantes como a Dígitro em 1977, cujo primeiro produto foi um placar eletrônico para o Estádio Orlando Scarpelli.
A inovação foi impulsionada pelas instituições de ensino UFSC, Udesc e IFSC (Instituto Federal de Santa Catarina). Mais tarde, seriam criadas associações, como a Fundação Certi, em 1984, e a Acate, em 1986.
“Todo ecossistema de inovação pujante, que se destaca, tem uma universidade forte no centro. E lá naqueles primórdios a gente tinha principalmente a Universidade Federal de Santa Catarina”, ressalta Diego Ramos.
A reputação dos cursos da UFSC, em especial os de engenharia, traz jovens de todo o Brasil para a capital catarinense. “Eles vinham atraídos em primeiro momento pela qualidade do curso. E, uma vez aqui, fica difícil querer sair de Florianópolis. As belezas naturais da Ilha e a segurança que a gente ainda tem atraem muito”, observa o presidente da Acate.
A Acate estima que, na época de sua fundação, havia cerca de 100 empresas de desenvolvimento tecnológico em Santa Catarina. Hoje, são mais de 27 mil. A expansão acelerou a partir de 2016, quando o estado atingiu a marca de 7 mil empresas. De 2021 para 2022, o aumento foi de 25%.
O Sapiens Parque, maior parque tecnológico de Santa Catarina, está localizado no norte da Ilha de Florianópolis. Com mais de 100 companhias instaladas, o local tem uma infraestrutura que promete ser de baixo impacto ambiental. São 25 mil m² de área verde, sistema de tratamento de esgoto próprio, programa de reutilização de resíduos da construção civil e aproveitamento da água da chuva.
Incentivos fiscais
Além do ecossistema de inovação consolidado, um atrativo de Florianópolis para os empreendedores são os incentivos fiscais. Há duas décadas, o município adota a menor alíquota de ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza) prevista em lei, que é de 2%.
O Programa de Incentivo à Inovação, criado em 2018 pela Prefeitura de Florianópolis, ficou conhecido como a “Lei Rouanet Manezinha” ao oferecer benefícios tributários a projetos que proponham empreendimentos inovadores na cidade.
Já a Lei Complementar n. 686, de 2020, permite que startups recebam incentivos fiscais ao se instalarem na região do “Centro Sapiens”, em uma tentativa de revitalizar o Centro Histórico de Florianópolis. A área abrange as ruas Trajano, Artista Bitencourt e as avenidas Paulo Fontes e Hercílio Luz.
A lei prevê a isenção total do IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana), contanto que o limite de área construída não ultrapasse 180 m², pelo prazo de até três anos.
As empresas de inovação no Centro Sapiens também têm direito à isenção de 50% do ISS durante três anos. Os requisitos incluem não possuir débitos com o município e ter rendimento anual de até R$ 2 milhões.
“Florianópolis foi uma das primeiras cidades a ter esse incentivo fiscal para que as empresas pudessem primeiro se estabelecer aqui e permanecer”, diz Diego Ramos.
Segundo a Acate, com base em dados da prefeitura, a arrecadação do ISS por startups e empresas de tecnologia em Florianópolis cresceu 69% de 2019 para 2022, superando R$ 90 milhões no ano.
“Isso refletiu nos serviços públicos. Hoje a gente tem uma educação que é talvez uma das melhores do Brasil, e uma saúde também. Acho que é muito em consequência disso”, opina o conselheiro Daniel Leipnitz.
Diversidade é um desafio
O mundo das startups, no entanto, ainda é pouco diverso. Segundo o Sebrae, 77% não possuem pessoas negras em suas equipes e 90% não têm pessoas com deficiência. Somente 9,23% das iniciativas catarinenses contam com membros LGBTQIA+ e nenhuma declarou ter pessoas indígenas no time.
As mulheres ainda são minoria, representando 25,83%. Isabela Blasi, da Indicium, observa que as colegas no setor de tecnologia são poucas. “Eu aprendi a me sentir confortável, porque não tinha muita opção. De fato ainda é um ambiente majoritariamente masculino”, nota.
Deixar Floripa? Nem pensar
Além dos empreendedores manezinhos, há também quem veio de fora para criar seu negócio em Florianópolis. Durante uma conferência de marketing e negócios da RD (Resultados Digitais), empresa fundada na Ilha em 2011, Filipe Bento decidiu largar a carreira de executivo no Rio de Janeiro.
“Eu vim para o RD Summit, me encantei com Florianópolis, me encantei com o ecossistema de tecnologia e falei: o que eu estou fazendo no Rio?”, lembra.
O empresário de 42 anos é natural de São Paulo e conheceu a esposa Marcelle Brayner, 40 anos, quando foi trabalhar no Rio de Janeiro. A falta de segurança na cidade, porém, levou o casal a se mudar para Florianópolis, em 2017.
Juntos, eles abriram a empresa Br24, que é a maior parceira global da plataforma Bitrix24. O software criado no Leste Europeu trouxe a proposta de descentralizar as plataformas de gestão de empresas e integrá-las em uma só.
Filipe conheceu a ferramenta pela internet e decidiu trazê-la para o Brasil com a Br24, que começou como uma revendedora de software em 2017 e veio a se tornar uma startup somente em 2019, com a criação dos primeiros aplicativos exclusivos: o PowerZap, uma automação do WhatsApp integrada com Bitrix24, e o PowerBot, um chatbot que utiliza inteligência artificial no atendimento aos clientes.
Hoje, o CEO vive na ponte aérea. “Eu acabo indo toda semana para São Paulo, e prefiro assim. Prefiro morar em Floripa, com a minha empresa respirando o ecossistema de Floripa, e, quando necessário, fazer negócio em São Paulo”, afirma.
A empresa de modelo B2B era inicialmente sediada em uma pequena sala alugada para quatro pessoas. Neste ano, já são mais de 80 colaboradores. Os chatbots se expandiram para 65 países e o faturamento da Br24 chegou a R$ 20 milhões em 2024.
Diego Ramos, presidente da Acate, destaca o papel do ecossistema no desenvolvimento das startups. “Empreender é um ato de coragem e é muitas vezes solitário. Então quando você tem um ambiente como o nosso, com uma cultura bastante colaborativa, isso é um elemento que com certeza contribui para aumentar o sucesso desses empreendimentos”, reflete.
A Br24 agora é uma das sete empresas que compõem o Atomic Group, ecossistema de inovação fundado em 2024 por Filipe. O grupo se propõe a impulsionar o crescimento de startups e desenvolver soluções educacionais. A meta para 2025 é faturar R$ 35 milhões.
Na visão do fundador da Br24, Filipe Bento, o movimento de empreendedores para Florianópolis é motivado pela junção de incentivos fiscais, cultura de inovação e padrão de vida que a cidade oferece.
“Tem muita gente querendo sair de São Paulo para ter qualidade de vida, assim como eu quero ter com a minha família. Isso é muito atrativo. Além do ecossistema forte, tem todas as belezas naturais e a segurança. Eu acho que é uma vantagem super competitiva para atrair talentos”, observa.
Sua esposa, Marcelle, está grávida da pequena Olivia, primeira filha do casal, que deve chegar neste mês de janeiro. Questionado se pretende sair de Florianópolis, Filipe responde sem hesitar: “De jeito nenhum”.